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Lilian Amaral

 

“Eu tinha a sua idade quando meu pai me entregou um par de botas de plástico branco, que eram duas vezes maiores que meus pés, anunciando à família que faria meu batismo em alto mar— uma tradição entre os pescadores. Foi um dia afortunado: não só retornamos com a barca transbordando sardinhas, como também fui presenteado pela Iemanjá com um budiãozinho azul que circulava faceiramente nas águas acumuladas em minha botina. O avô explicou que o budião era um peixe benfazejo, e eu era agora responsável por seu sorriso. Mantive as botas por todo o verão, e meu novo amigo me acompanhou: nas peladas de praia, dando saltos de um palmo quando furávamos o gol; na escola, me ajudando com as contas ao bater a cauda na água com o resultado; e na igreja, resvalando minha canela quando eu cochilava no sermão. Quando ganhei um beijinho, da Silvinha, na bochecha, ele quase caiu para fora da bota com uma pirueta tripla. Ao se alimentar dos musgos e líquens que cresceram entre os dedos do meu pé, o budião acabou engordando bastante. Então, o pai disse que meu amigo precisava retornar ao mar para formar família. Foi uma despedida dolorosa. Já em casa, quando fui retirar as botas, me detive ao notar um cordãozinho com minúsculas contas peroladas em torno do tornozelo.  As bolinhas, que a princípio eram translúcidas, com o passar dos dias, ficaram esbranquiçadas, amareladas e, por último, acinzentadas. No dia de Natal, as bolinhas eclodiram, coalhando a água da botina com diminutos pontinhos azuis que nadavam ligeiros e festivos. Meu amigo, na verdade, era uma amiga.”

© Copyright 24/12/2023
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Lilian Amaral

 

No gramado,

elevam-se em ondas.

No flamboyant,

frutificam.

© Copyright 19/12/2023
© Copyright 10/12/2023

DO QUE É FEITO O TEMPO?

 

Lilian Amaral

 

É verão. Na cidade, a tarde liquefaz o calçamento, mas aqui, sob o ar-condicionado do museu, se faz amena.

Contemplo as Ninfeias de Monet. Na gigantesca tela, observo imagens fragmentadas concebidas com pinceladas curtas, ora homogêneas, ora matizadas. O lago e as flores que, quando admirados de longe, comunicam suavidade e harmonia, agora próximos, me provocam angústia enquanto busco imagens que sustentem a pintura. Os lírios d’água, sem o alinhamento  do contorno e a distinção de luz e sombra,  ganham um aspecto caótico. Perturbador. 

Acredito que o tempo também deve ser assim — quando fragmentado nos nossos afazeres e compromissos diários, ele perde a forma. Deixamos de distinguir o que é verdadeiramente significativo e nos perdemos no caos. Só quando visto à distância de nossas memórias é que o tempo ganha feição, e enxergamos o que verdadeiramente nos trouxe paz e unidade.

Vejo o guia entrar na sala da exposição com uma dezena de adolescentes ensolarados pela pouca idade. O resplendor deles desfaz o desalinho que me turvava a vista. Deixo o museu e sigo caminhando pela cidade.

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Lilian Amaral

 

Não durmo há dez mil anos.

Não durmo, porque minha cama é apenas uma cama.

E.

Minha cama. Não mais. Cai em sono.

 

Mas.

Mas, se eu ganhasse.

Se eu ga-nha-se uma cama ganso.

Se eu ganhasse uma cama de plumagens tão etérea como o despertar de uma manhã num lago; talvez; talvez eu encontrasse a Mamãe Ganso e suas histórias de ninar.  

 

Mas.

Mas, se eu gaa-nhaa-ssee.

Se eu ganhasse uma cama baleia tão imensa como o oceano; talvez; talvez eu pudesse me abrigar e comprimir as sombras.

 

Mas.

Mas, se eu gaaa-nhaaa-sseee.

Se eu ganhasse uma cama vento. Tão poderosa quanto o próprio tempo; abocanhariaoscarneirinhos  rodopiariaofirmamento     afundariaossetemares.

 

Talvez.

Só, talvez.

Se eu; ti-ve-se; se eu tivesse uma cama noite.

Minha cama.

Sonhasse:

eu.

© Copyright 03/12/2023
O ESPIÃO.png

Lilian Amaral

 

 

Eu comemorava meus sete anos quando ganhei os sete pimpões-encarnados. Dois meses depois, executei um assassinato.

O aquário, com os sete peixinhos, era a primeira coisa que eu via quando acordava e a última antes de adormecer. Ao lado da minha cama, ele ocupava metade da escrivaninha onde eu desenhava.

Com o fundo coberto por pedriscos brancos, o cubo de vidro tinha no canto esquerdo uma cortina de plantinhas delicadas que, tal qual a rabiola das minhas pipas, flutuavam para lá e para cá, como se estivessem ao vento.

 

No canto direito, suspensa na lateral do vidro, ficava a bomba de ar, que lançava um véu de bolhas que deslizavam pela água até a superfície, onde desapareciam. O aquecedor e termostato, também, ficavam desse lado.

 

No centro, um pequeno baú do tesouro, de plástico colorido, descansava sob um portal dourado. Mesmo sabendo que era tudo de mentirinha, eu gostava de imaginar que um dia piratas viriam para roubar minhas riquezas, e os pimpões, feito sete guardiões, lutariam para manter o baú.

À distância, eu observava os peixinhos, sempre em grupo, deslizarem pelo aquário ora atravessando o portal, ora escarafunchando os pedriscos. Mas era só eu me aproximar do vidro que eles sumiam entre o cortinado verde.

 

Tentei nomeá-los, fiz até uma lista com nomes inspirados nos mosqueteiros ninjas, mas a rapidez com que se escondiam tornou impossível distinguir características com as quais eu poderia diferenciá-los.

Quando eu polvilhava a superfície da água com ração, eles emergiam como uma entidade única com sete enormes bocas que se abriam e fechavam rapidamente, como minis sifões, abocanhando os floquinhos que boiavam na superfície. Assim que terminavam com cada cisco, novamente, se escondiam atrás das plantas.

Nós morávamos em um apartamento minúsculo, por isso, minha mãe tinha se recusado a me presentear com um cachorro. Ela trabalhava com costura o dia todo em uma fábrica de pijamas, e eu ficava na escola somente até o começo da tarde. Quando mamãe me presenteou com os peixinhos, disse que eles me fariam companhia até seu retorno. Mas não foi o que aconteceu.

Certa noite chuvosa, acordei com os estrondos dos trovões. Corri para o quarto da minha mãe, para sua cama. Era o que eu sempre fazia. Não que eu tivesse medo de tempestades, mas mamãe tinha, e eu sabia que ela precisava de meu abraço para poder dormir novamente.

Quando amanheceu, retornei ao meu quarto e foi então que me deparei com a tragédia. Seis dos meus pimpões-encarnados boiavam na superfície da água, tombados de lado. Gritei, e mamãe veio correndo.

Assim que ela tocou no aquário, sentiu que o vidro estava quente. Durante a chuva da noite, a energia deve ter oscilado e queimado o termostato, fazendo com que o aquecedor trabalhasse mais que o necessário, superaquecendo a água e matando os peixes.

Um único pimpão suportou o calor e sobreviveu. Porém, ele não era mais o mesmo: sua cor desbotou, de vermelha, passou para alaranjada; seus olhos dobraram de tamanho e ficaram esbugalhados, parecendo querer saltar fora; e seu corpo ficou arredondado, como se ele tivesse engolido um balão. Não foi só o seu físico que sofreu anomalias: seu comportamento também não era mais o mesmo. Lento, ele pouco se movimentava.

Nomeei-o Espião, uma vez que, com seus olhões colados ao vidro, ele seguia meus deslocamentos pelo quarto, como se eu fosse um de seus antigos companheiros. Senti compaixão por ele.

No dia do acidente com o termostato, mamãe disse que, provavelmente, ele não viveria por muito tempo. Mas ela estava enganada: ele viveu por mais cinco anos. Contudo, sua vida não foi fácil. Depois do infortúnio de perder os amigos, ele ainda passou por um novo perrengue quando, um mês depois, compramos um novo companheiro para ele.

Rajado de preto e branco, com filetes vermelhos nas barbatanas, o Beta parecia estar vestido com a saia de babados de mamãe. Seu nado, um bailar deslumbrante, me hipnotizava.

No primeiro dia, eles se ignoraram. Depois de uma semana, notei que o rabo do Espião estava rasgado e parecia faltar um pedaço. Mamãe ligou para o aquarista para que receitasse um remédio, pois achávamos que um fungo estava comendo sua cauda. O homem recomendou que ela prestasse atenção se não era o Beta que o estava atacando, pois essa espécie de peixe, às vezes, fica muito territorial. 

Depois de alguns dias, não tivemos dúvidas da virulência do Beta. Mamãe prometeu comprar um novo aquário, no seu próximo pagamento, para separá-los. Porém, eu sabia que o Espião não sobreviveria aos ataques até lá – ele era frágil. Assim, bolei um plano para assassinar o Beta.

Certa tarde, depois de retornar da escola, aqueci um copo de água no micro-ondas e levei-o até a escrivaninha. Com a redinha de limpeza, pesquei o Beta com a intenção de mergulhá-lo na água quente, mas perdi a coragem.

Com o peixe ainda se debatendo na redinha, levei-o até o banheiro e soltei-o no vaso sanitário. Na louça branca do vaso, ele ficou até mais bonito em seu bailado. Rezei uma ave-maria. Enxuguei as lágrimas e o ranho na manga da camiseta. Pedi perdão a Deus e ao Beta e apertei o botão da descarga.

Retornei ao quarto com o nariz escorrendo e a cabeça pesada. Então, também colei meu rosto no vidro, encarei os imensos olhos do Espião e repeti as mesmas palavras que minha mãe me disse no dia em que lhe perguntei quando o papai iria voltar. Abraçados, ela sussurrou no meu ouvido: “Eu terei que ser suficiente”.

© Copyright 24/11/2023
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Desta vez, só você sabe!

Lilian Amaral

 

Da têmpora escorre um fio carmim. Fio que macula o turbante branco. A túnica branca. O lençol branco. O tapete branco. As paredes brancas do Plaza White.

No criado, uma pistola dourada.

Você pensa: suicídio.

O policial relata: arma decorativa.

Você observa o quarto. Aroma doce. Incenso? Diploma de premiação de falconiforme. Gaiola aberta. Janela aberta. Porta trancada.

Você pensa: roubaram o pássaro premiado e simularam o suicídio.

O legista atesta: sem vestígio de pólvora.

Você pensa: que diabo aconteceu?

O sargento especula: parece que algo perfurante atingiu a têmpora.

Você, confuso, se perde nas pistas. Ensimesmado, entra no elevador. Sai do hotel. No caminho, atende uma ligação. É do departamento de investigação criminal, o coronel, seu superior, exige a prisão do assassino do Xeique.

 

Alerta, você entra na viatura policial. Seu olhar cruza com o meu. Você aponta o outro lado da rua e murmura: “Olhe, aposto que a solução está ali.”

O que você vê?

a. (    ) Bela morena. Olhos de rapina. Grandes brincos, ponta de lança. Vestido branco, sensual, manchado. Guardando gaiola camuflada no porta-malas.

b. (   ) Uma harpy eagle rara voando baixo. Carregando vísceras no bico. Talvez, caçando no jardim do hotel. Livre.

c. (   ) Nariz adunco. Costas largas. Braços fortes, fechado com tatuagens. Suástica. Cruz de ferro. Águia ariana. Turbante branco, místico. Esgueirando-se pela portaria.

© Copyright 19/11/2023
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Lilian Amaral

 

 

O dia nasceu rosa.

Rosa, o mesmo nome que ela recebeu ao nascer.

Ainda guria, Rosa gabava-se de ter sido batizada flor. Agora esposa, o amado, nos momentos de paixão, a chamava de “minha flor”.

Contudo, nem tudo era flores em sua vida.

Um entardecer cor-de-rosa sempre tinha sido para ela um regalo a se contemplar, um espetáculo de cor que a comovia, como se a mãe natureza tivesse vestido a tarde em tons rosados só para agradá-la.

Um amanhecer rosáceo, por sua vez, anunciava um mau presságio. Aviso de que os tempos de seca haviam chegado. Noites áridas e manhãs coloridas pela terra vermelha, que arrebitava com o alento do alvorecer.

Na janela, Rosa murcha desolada. Ainda na primeira semana de núpcias, ela e o esposo haviam sonhado com o brotar de seus primeiros rebentos. Agora, sem a chuva, ela não mais conseguiria florescer. Teria que abandonar seus adornos ao vento e conservar apenas o caule seco, espinhento. Renunciaria à raiz, seu bem-amado, que persistiria como herança para uma nova geração.

Sob o bafejo ressecado da noite cálida, ela sussurrou um adeus ao estimado esposo e desnudou-se de suas vinte pétalas. Não legou brotos nem botões, apenas deixou que a afável brisa conduzisse seu perfume aos sete cantos da terra.

Naquele mesmo dia, um colibri me contou que viu uma de suas pétalas perfumar a água de banho de uma recém-nascida que florescia com as bochechas róseas. Outra pétala pairou sobre a folha em branco de uma escritora enamorada que, inebriada pelo aroma adocicado, se pôs a compor um poema. Dezoito delas foram recolhidas para salpicar os recém-casados que deixavam a igreja e que, alguns anos mais tarde, conceberiam filhas que batizariam de Rosa. 

© Copyright 13/11/2023
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Lilian Amaral

 

 

Lápides de mármore, granito, ardósia, cobre, porcelana, niquelados. Sem lápide.

Lápides quadradas, retangulares, ovais, cruzes. Disformes.

Lápides merecidas, saudosas. Lápides ostentosas. Lápides enigmáticas. Perplexas, esquecidas. Sem lápide.

Túmulos de pedras nobres. Túmulos de seixos. Túmulos de blocos, tijolos, placas de concreto, grama. Saibro.

Túmulos monumentais, túmulos suntuosos, mausoléus, jazigos, modestos, simplórios. Cova.

Um anjinho, uma foto, um brasão do time. Uma imagem santa. Uma cruz. Um vaso, um prato, flores. Tiririca.

Uma escultura, uma mensagem. Muitas velas. Uma vela. Abandonado. Vago.

Lágrimas. Desespero. Remorso. Solidão. Alívio. Já foi. Tanto faz. Mais um. Hã-hã.

Vento, pássaros, vozes, cantos, rezas.

Sombras. Rastros. Chorume.

Silêncio. Oco.

***

— Hei, você! “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos."*

 

* Frase inscrita na Capela dos Ossos, em Évora, Portugal.

© Copyright 02/11/2023
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Lilian Amaral

 

 

O escuro cheirava a perigo. 

O corredor. Sinistro. Tenebroso. A porta do banheiro, em algum lugar do negrume sem fim.

Ele aguçou o ouvido. Nada. Nada. Deu um passo. Ouviu um eco. Deu outro passo. Outro eco. Com a voz encolhida, sussurrou: "Pai, é você?".

Silêncio. A casa suspensa. As paredes inclinadas para ouvir o retumbar do coração do menino. O pavor envolvendo seu corpo feito cobertor glacial.

Com os pés pequenos. Desajeitados. Deu meia volta e correu. Atrás dele, passos. Passos. Passos. Mais perto. Mais perto. Bafejo quente na nuca. Mão peluda no calcanhar.  Bateu a porta do quarto com força, dizendo a si: "Tranque, tranque, tranque logo!".

Com as costas coladas à porta, viu o estojo de canetinhas sobre o criado. Trepou na cama. Retirou da parede o quadro com sua foto na praia. 

Estremeceu quando a maçaneta girou e a porta chacoalhou.

Ofegante, debruçado sobre a cama, juntou as canetinhas e rapidamente desenhou sobre a foto a figura do pai — alto, forte, segurando sua mão. Trêmulo, devolveu o quadro à parede.

Para a foto fugiu, quando a porta foi derrubada.

 

O perigo invadiu!

© Copyright 29/10/2023
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Lilian Amaral

No alvorecer do seu primeiro dia, do batente da porta da cozinha, ela observa a gorda aranha de pelos castanhos emboscar um louva-deus.

Tal como ela, em sua primeira noite, entre os lençóis do primeiro dia, tinha sido encurralada por um robusto dorso coberto de pelos castanhos com promessa de mel e oferta de fel.

Com uma varinha do galho da amoreira, ela rompe a trama de fios sedosos, libertando-o.

Porém, com um salto desajeitado, o pobre bichinho acaba como banquete para um carreirão de pintinhos, que rapidamente avança pelo terreiro. 

Feito elfos assassinos, os pintos esquartejam o louva-deus com bicadas famintas.  

Enquanto ela observa a cena macabra, questões borbulham dentro de si:

E se ela não tivesse rompido a teia, teria o louva-deus uma morte mais digna?

E se ela tivesse sido mais atenta, poderia ter espantado os pintos?

E se ela não tivesse madrugado na porta da cozinha, poderia a natureza seguir seu curso?

E se ela não tivesse sido tão afoita, poderia ainda estar curtindo seus 17 anos?

E se ela não tivesse acreditado em promessas encantadoras, poderia ainda estar solteira?

E se ela tivesse se resignado a ser brutalmente violada, poderia ainda estar entre os lençóis?

E se ela fosse submissa, poderia ter poupado o homem da degola?

E se ela

E se

E

...

© Copyright 22/10/2023
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Lilian Amaral

 

 

Ela habitava e respirava. Pela manhã, bebia e comia ausências. À tarde, convivia isolamento. Na noite, se aconchegava ao vazio. Todos tinham pressa. Todos tinham compromissos. “Time is money".

Sem ninguém para conversar, falava com o céu, com as nuvens e até com o ar. Nem os pequenos animais, como pássaros, cães e gatos, tinham tempo para seu palavrear.

Certa manhã, no retorno da segunda missa do dia, embriagada pela apatia, deixou escapar da pequena bolsa de crochê, que trazia apertada na dobra do braço, um santinho de papel com a imagem e oração de Santo Antônio.

O miúdo retângulo escorregou ligeiro pelo vão do fecho de metal que o mantinha seguro e foi apanhado pelo vento rasteiro, vento de chuva porvir. O santinho rodopiou, juntou-se ao redemoinho de terra vermelha e cruzou a praça até desaparecer entre os arbustos de azaleias. 

Ela não se moveu, não correu atrás. Apenas fitou-o e lembrou-se dos anos em que, desejosa, se agarrou àquele impresso, orando e suplicando a Santo Antônio que lhe concedesse a graça de um companheiro de vida. Mas nada. Também o santo não lhe deu ouvidos.

Após ter resistido, solteira, há setenta e oito invernos, já não fazia mais sentido tal devoção. Que o vento levasse seu sonho e presenteasse a imagem do santo a outra rapariga com melhor sorte.

Com um oco no estômago, retomou o caminhar à casa. Porém, com poucos passos, o vento lhe soprou uma voz melodiosa que acarinhou seus ouvidos, adentrou suas entranhas e assentou próximo ao seu coração. Era uma voz masculina que clamava: “Senhora, senhora, espere um pouco!”.

Arrebatada pelo canto do moçoilo, tal qual ao das lendas das sereias, encontrou um par de olhos mais profundos que sua escuridão. Os olhos curvavam um sorriso e lhe estendiam o santinho de papel. Mais do que isso, muito mais. Estendiam-lhe, também, ternura e gentileza. Acanhada com a atenção do rapaz, dessa vez, foi dela que evadiu a fala. Somente acenou com um ligeiro movimento da cabeça e desatou a caminhar com amplas passadas.

Contudo, o moço não se conteve. Marcou seus passos. Estendeu seu canto, buscando pescar interação. Já no portão, amenizado o susto inicial, ela desembaraçou seu constrangimento e lhe cedeu um sorriso agradecido. Aceitou a imagem estendida e observou em detalhes o varão.

Não muito alto, mas de grande presença. Larga beleza, sorriso hipnótico. Olhos impetuosos. Roupa impecável.

Ainda no portão, conversaram por mais de uma hora. Ela lhe falou de sua rotina religiosa, da educação católica na família materna, dos familiares paternos de origem espanhola, dos tempos de escola e do trabalho no correio. Só se calou quando o jovem, suado e avermelhado pelo sol inclemente do meio-dia, sol que precede chuva, pela primeira vez, a interrompeu rogando um copo de água. Ela mesma sentia a boca seca e o vestido de banlon úmido de suor.

Examinou a vizinhança, insegura. O moço era desconhecido. Mas tão belo. Educado. Atencioso. Interessado em suas histórias. Interessado nela. Tomou coragem e convidou-o para entrar e refrescar a garganta.

 

A princípio, ele recusou. Desejava apenas um copo de água. Ela insistiu. Ele entrou. Sentou-se. Bebeu a água e lançou novamente o anzol para que ela continuasse com as historietas.

Exultante diante de um ouvinte tão precioso, ela perdeu a noção do tempo e do jorro das palavras; apenas se interrompeu quando um ronco ecoou da barriga do rapaz. Ele, sem jeito, pediu perdão e começou a explicar que tinha que partir, pois já eram mais de duas horas da tarde, e o almoço na padaria deveria estar se findando.

De jeito nenhum”, ela protestou. A comida da padaria era horrível, e, se ele não se incomodasse, poderiam dividir uma torta de palmito que ela havia deixado pronta antes de sair para a missa. Aproveitou a situação para recitar a receita da torta, especialidade de sua avó materna.

Decorrida mais uma hora de bate-papo, notou que o rapaz estava ficando pálido, e, mais uma vez, sons estranhos pipocavam de seu tórax. Encabulada, sem mais ter como esticar o papo, ela se dirigiu à cozinha e colocou a torta no forno para aquecer. Retornou à sala, a contar seus causos, até que o aroma suculento fizesse com que o pobre rapaz se engasgasse com a própria saliva.

Ela serviu-lhe um pedaço generoso que ele, muito timidamente, repetiu mais duas vezes. Ela mal tocou na sua fatia, empolgada com a prosa. Ele devorou ainda mais duas tacinhas de manjar de coco.  Estavam no chá digestivo quando ele começou a esfregar as mãos nas coxas e a explicar que precisava partir, compromissos inadiáveis o aguardavam. 

Então, ela propôs um cafezinho de despedida, feito com grãos de exportação, plantados por um amigo de longa data que os cultivava sem aditivos químicos, sendo ela mesma a responsável pela torra e a moagem, o que fazia da bebida uma iguaria excepcional. O jovem rapidamente aceitou, dizendo que o café era seu maior vício. Ela riu e, encantada, adentrou a cozinha.

Enquanto isso, ele ficou na sala a observar o ambiente: a antiga, mas bela cristaleira com taças finamente esculpidas; os castiçais de bronze, provavelmente, de latão cromado; os porta-retratos dos familiares; as toalhinhas de rendas branquíssimas; os quadros com estampas de belas paisagens; e os vasos de flores de tecido, um tanto desbotados. Nada de muito valor, a não ser a bolsinha sobre a mesa, com os trocados para o dízimo, e o crucifixo sobre a porta de entrada, que ela mesma tinha declarado ser de prata, presente de um afilhado joalheiro. Ela era uma senhora simples, sem grandes posses. Todavia, pouco era melhor que nada.

Ao retornar à sala com a bandeja de café e apoiá-la sobre a mesinha de centro, logo, ela percebeu o sumiço da bolsinha de crochê. De esguelha, esticando a vista para a porta da sala, viu o prego solitário sobre o batente. O jovem continuava sorridente e mais falante que antes, mais ansioso para se despedir.

Sem pressa e mantendo o bom humor, ela serviu-lhe o líquido escuro e fumegante com mais uma de suas histórias. Sentou-se e insistiu que ele se sentasse novamente para ouvir um último caso, uma curiosidade sobre sua avó paterna, que, no passado, tinha emigrado, foragida, da Espanha para o Brasil, depois de ser condenada por bruxaria. 

Impaciente, o jovem se resignou a ficar por mais um instante, até que suas pálpebras pesadas não mais conseguiram se sustentar. Sua cabeça se inclinou, com o queixo colando ao colarinho, e sua xícara tombou no tapete, derramando uma última gota restante do café.

Então, ela pousou a delicada xícara de porcelana casca de ovo sobre a mesinha, com o cheiroso café ainda intocado. Retirou com cuidado seu crucifixo de prata e sua carteira de crochê do bolso da calça do moço. Retomou seu lugar na poltrona, fechou os olhos, cruzou as mãos sobre o colo e começou um novo relato.

Enquanto a chuva desabava na rua, ela tinha — para sempre — o jovem sentado no sofá, encantado com o seu falar.

© Copyright 15/10/2023

Lilian Amaral

 

Na base da montanha, Sara anunciou que seguiríamos até o pico em uma pernada.

Cincohorasdecaminhadasemparadasemdescanso.

Especialista em leis, ela também se considerava especialista em traçar rotas. Assim, minha mulher havia dispensado a orientação de um guia (e eu a acompanhava sob sua sombra).

Sem olhar para trás, ela avançava viril pela trilha de pedras. Feito camaleão, Sara deixou de ser a criatura elegante que, com passadas sinuosas, comandava as audiências no tribunal do alto de seus scarpins pretos. Para, agora, calçando coturno, triturar passos no caminhar (sob meus pés, eu sentia o tremor). 

 

Serpenteávamosainterminávelencostaíngremeabrasadapelosol.

 

Após duas horas, o ar me escapava dos pulmões. Na nuca, meus cabelos empapavam de suor e dos músculos aflitos, ascendia uma náusea do que havia mais torpe em mim.

Após três horas, tudo era peso.

Mais trinta minutos, eu iria desmaiar (e ela, nem perceberia).

 

Estanquei de súbito como se eu tivesse levado um tapa na cara. Tomado por uma epifania, aspirei o ar que agora abundava.

 

A sombra dela não mais me cobria. Virei-me,

(rindo)

deslizei rochedo abaixo,

com pisadas flutuantes,

resvalando a cauda de leve,

zeloso,

para que nem um

diminuto ruído

(ecoasse).

© Copyright 02/10/2023
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Lilian Amaral

 

Emergi assim que o sol estreou no coração do céu.

Todos os dias, aguardo o momento em que a intensa claridade reflita na água e oculte minha presença para que eu possa espiar a jovem mulher na areia.

Hoje, ela está deitada de bruços, e o moreno forte desliza as mãos pelo seu corpo deixando um rastro reluzente. Depois, ele deita-se ao seu lado e mescla seus corpos. À tarde, eles correm pela praia, lançando-se nas ondas. Rindo muito, eles se enovelam com as bocas coladas.

Eu a invejo. Invejo suas madeixas negras. Invejo sua risada. Seus gritos de amor. Invejo até sua casa de vidro nas dunas. Assim como invejo poder caminhar naquela ilha verde de areias brancas. Eu a invejo.

Quando não suporto mais meu próprio veneno, dou um impulso com minha cauda e mergulho. A trilha dourada de meus cabelos me acompanha até as profundezas. Sigo cada vez mais fundo. Mais fundo. Para além de minhas entranhas corroídas pela felicidade da outra.  

Retorno no dia seguinte. Eles não estão na areia. O moreno está saindo com o carro em alta velocidade. Ao meu lado, boiando na ondulação cintilante, está um corpo de mulher, com mechas escuras, olhos arregalados e uma gargantilha violácea.

© Copyright 17/09/2023

Quadro Quadrado

Lilian Amaral

 

À parede, digo que meu saco transborda. Retiro e penduro quadros de vida. Quadros que aspiro chegar algum dia. Quadros que ilustram ilusões esquecidas. Sacos cheios e vazios de vida. Uns comovem, outros riem, uns apenas dão vontade de apagar. Quadrados de penas, quadrados de risos, quadrados de choro; onde mora o paraíso? Um dia boto fogo em tudo isso, queimo os quadros e suspiros. Enquadrar passado e futuro a ninguém convém: quatro varetas não fazem um quadro, quatro paredes não bastam à vida.

© Copyright 09/09/2023
Gira logo2.png

Lilian Amaral

 

As crianças giram que giram. Radiantes, cantarolam cantigas de roda.

Os garfos giram que giram. Ligeiros, transformam claras em neve.

O designer gira que gira. Ousado, parafusa um módulo de som na batedeira.

O confeiteiro gira que gira. Resmungão, acrescenta açúcar e finaliza a receita.

 

***

 

As crianças, ainda no recreio, sonham com guloseimas que dissolvem na língua.

Os garfos, seduzidos pela filarmônica, solfejam as claras e o açúcar em picos diáfanos.

O designer, divertido com seu experimento, devaneia desfrutando a melodia.

O confeiteiro, enfeitiçado, após levar o quitute ao forno, espia da janela a doce professora e 

ssusssspira!

© Copyright 06/09/2023
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Lilian Amaral

 

 

Chegamos às seis e trinta de uma manhã gelada de 1948. A cerração densa ainda mantinha o sol adormecido na mata.

A Cuca e o Saci já nos esperavam na porteira. Ela ganhou um banho de beleza. Ele, a liberdade para ostentar um penteado black power e uma perna mioelétrica turbinada para rodar o mundo.

Com uma escada alta, retiramos a placa Sítio do Pica-Pau Amarelo e estendemos a bandeira arco-íris, over the rainbow.

Como combinado, Emília nos deixou entrar e nos conduziu até a sala. Lá, rapidamente retiramos D. Benta de sua cadeira de balanço, amarramos um avental em sua cintura e uma vassoura de piaçava nas suas mãos. Assentamos tia Anastácia no sofá, com os pés inchados descansando sobre uma pilha de almofadas e um livro nas mãos.

Pedrinho e Narizinho estavam servindo o café com bolinhos à tia quando Lobato apareceu de roupão de flanela xadrez no corredor. Despenteado e com os olhos sonolentos e remelentos, o escritor mal enxergou o vento antirracismo que varria sua obra.

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Sacanagem, puxa!

Lilian Amaral

 

 

Se uma ideia puxa outra. 

Se uma mentira puxa outra. 

Se uma maldade puxa outra.

Eu puxo uma microssaia e vou trabalhar.

Assim que aterrisso na calçada,

sinto uma rajada glacial rasgar as pernas. 

Descubro, então,

que microssaia não puxa verão, 

como também,

que vento cruel não puxa meia de lã.

Pioorrr, 

após ter encarado o busão atulhado,

chegar no trampo com os dentes em frangalhos,

tenho que puxar o breque na porta.

Sim,

a porta está trancada. 

O aviso grudado com fita crepe diz:

“Lacrado por falta de pagamento”. 

Como assim? hoje? no último dia do mês? no dia do meu pagamento? e meu chefe? a secretária? a tia da copa? os estagiários? o boy? os processos? aquele monte de pastas arquivadas na salinha sem janelas? e a máquina de xerox que eu piloto todo santo dia? 

Enquanto milhares de questões em bailado repuxam,

Lembro-me da minha avó e do seu bordão:

“Uma coisa puxa outra”. 

Puxo o celular do bolso e digito uma mensagem: 

“Garcia, seu elfo de topete vermelho, ou você deposita hoje o salário que me deve ou sua esposa vai receber um videozinho da hora extra que puxamos no final de semana”. 

© Copyright 20/08/2023
Os chinelos.png

Lilian Amaral

 

Mais uma vez desperto dentro deles.

Frios, há muito.

Ruço, lustroso e liso, o couro ainda guarda solidez.

Presenteados por mim. Na vitrine, pareceram perfeitos. Em seus pés, severos, desconfortáveis.

Fiquei constrangida.

Ele riu e me abraçou.

Suas grandes mãos, crispadas, fortes, apalparam o calçado e o esticaram para lá e para cá. Os pés inchados, pesados e determinados, decretaram que, em breve, o amansaria; o couro subjugado, se curvaria, acolhendo e moldando-se à sua pisada como um abrigo.

Diante de tamanha fé em si, tive a certeza de que meu pai seria sempre meu refúgio. Assim, quando minha insegurança transborda, na sua ausência, me aninho em seus chinelos, buscando valentia.

 

 

© Copyright 13/08/2023
Anjo da guarda para casal.png

Lilian Amaral

 

 

“Mulher, 42, mata marido com dois tiros na testa; polícia suspeita de crime passional”

(02/05/23 Plantão Zero Segundos).

 

A fila do caixa está parada. Adiante, uma senhora discute com o operador. A voz dela é baixa, impossível de ser ouvida do meu lugar na fila. Escuto a fala exasperada do funcionário. Ele explica que as configurações do anjo para casal não podem ser alteradas para single, e o desconto promocional não pode ser aplicado a anjos pessoais.

A discussão segue. Bufo!

Deixo de prestar atenção e, intimamente, pondero qual tipo de homem deve ser o marido da mulher, o porquê de ela desejar um anjo para zelar só por si e se ela está pensando em se livrar do cônjuge ou algo assim.  

Vejo a mulher abandonar o carrinho com o anjo e marchar para fora do supermercado. Os dois clientes na minha frente passam rapidamente suas compras, e chega a minha vez.

 

O operador está com a cara vermelha, olhos vidrados na tela do caixa. Seu semblante fechado perde a cor quando eu digo que estou ali para devolver o anjo para casal que meu esposo comprou sem meu consentimento.

Assim que ele reconhece minha voz, desvia os olhos infiéis da tela a tempo de me ver sacando a Taurus 85.

© Copyright 07/08/2023
Looking for a new Rapunzel.png

                                                    Lilian Amaral


Não foi um príncipe seu salvador;

nem original a ideia das tranças.

Um senhor abastado, com a pontinha do pé esquerdo já flertando com a cova, decidiu que precisava de um genro para administrar suas empresas e zelar por sua filha. O futuro noivo deveria ser ambicioso e destemido, atestando tais qualidades ao resgatar a jovem enclausurada na cobertura do Burj Khalifa (o edifício mais alto do mundo na época).

Assim, a vindoura noiva, após bater os apliques de cílios longos, lançou sua trança, torre abaixo, para que o mais valoroso dos pretendentes a escalasse. Os machos, seduzidos mais pelo dote do que pelas longas madeixas que bailavam feiticeiras, deram início à prova. Ao primeiro faltou energia aos bíceps imaturos, e acabou se esborrachando; o segundo,  inebriado pelo shampoo de camomila da trança acolhedora, cochilou e  foi engolido pelos fios desnutridos que selaram as pontas; o terceiro teve o pé com joanete embrenhado em um tufo da cabeleira e acabou pendurado de ponta cabeça; o quarto, uma semana depois, quando a trança já se encontrava sebosa, acabou por escorregar do centésimo primeiro andar. Inúmeros foram os competidores e, ainda maior, o número dos perdedores.

O senhor abastado, que àquela altura já se encontrava apenas com a ponta do nariz e a mãozinha direita para fora da cova, acenou para que liberassem a escada de incêndio do Burj, dando uma canja à sorte dos machos.

Um ano depois, quando um afortunado pretendente chegou ao centésimo sexagésimo terceiro andar, encontrou a suíte vazia, a janela aberta, a longa trança amarrada a uma poltrona e, ao lado, um notebook sem bateria e uma pilha de livros de administração bem manuseados.

 

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Um pra casar.png

Lilian Amaral

 

 

 

Acordei com o cheiro.

E esqueci-me do cheiro assim que avistei o pecado.

Enterrada no travesseiro ao lado, repousava uma cabeleira dourada, que terminava em um ombro vigoroso com tatuagem do infinito. O dorso acobreado contrastava com o branco do lençol, que descansava sobre ele. O tecido leve e puído ocultava pouco da volúpia.

Examinei com luxúria as colinas e os vales lascivos. Estudei a elevação da bunda. Pequena. Polpuda. Arrebitada. Estiquei o olhar para as pernas devassas. Segui admirando até o lençol terminar. Até o lençol. Até o. Até. Até uma pata robusta, coberta por pelos grossos e negros, com cascos afiados e curvos na ponta. O cheiro era de bode.

A recomendação da minha bisa, para que eu sempre observasse os pés dos pretendentes e me certificasse de que não eram o capeta travestido de príncipe, passou-me uma rasteira e lançou-me de ponta cabeça do sétimo Céu direto para o Inferno.

Esgueirei-me o mais silenciosamente que pude para fora da cama e fugi sem olhar para trás. Nem percebi quando deixei escapar uma pena, que flutuou melindrosa até o carpete.  

22/07/2023 COPYRIGHT

Correio Elegante.png

Lilian Amaral

        "Aperte ctrl + alt + del, porque eu travei quando a vi!"

— Por mim, você pode continuar empacado o resto da vida.

 

 

       "Digitei ‘amor da minha vida’ no Google, cliquei em ‘estou com sorte’ e achei você."

 

— Pois é, dia de azar no Google.

 

 

       "Se até duas retas paralelas se encontram no infinito, por que não podemos nos encontrar?"

— O infinito fica longe, melhor você partir logo. Sigo na transversal.

 

Sonhei que encontraria o homem perfeito. Faminta de amor, eu havia caprichado nas tranças, nos laços turquesas e na pinta, bem no cantinho superior esquerdo do lábio escarlate. Após circular por horas pela quermesse, encarando os “gajos” e abanando as pestanas lânguidas, esperancei pela mensagem perfeita, escrita pelo rapaz perfeito. Desisti. Enfrentei a fila do pastel e pedi um de queijo. O pastel tinha a casquinha crocante, salpicado de pururucas miúdas, sequinhas; recheio, de ponta a ponta, puxa-puxa. Me lambuzei. Antes de limpar os beiços, percebi uma mensagem escrita à caneta no guardanapo de papel. Então, olhei novamente para a barraca de pastel e descobri que precisava de mais um de queijo: perfeito!

16/07/2023 COPYRIGHT

Transportando Corações.png

Lilian Amaral

 

 

Pontual  e preciso,  há dez  décadas ele  entregava  e  recolhia  corações. 

Corações amplos, acanhados, esquálidos, fornidos, novatos e vetustos, todos eram acolhidos com conforto. E, quando chegava a hora acertada, ele cumpria com esmero seu trabalho, entregando e recolhendo existências.

 Independentemente de origem ou destino, todos os corações tinham a mesma constituição e função, com uma pequena irregularidade aqui e ali, que vez ou outra era reparada. Eram capazes de amar e odiar em igual medida, conforme a ambição e o arbítrio.

Orgulhoso de seu ofício, o motorista, bradava o peito, engrandecido.

 

Até 

o

dia

em que

ele recebeu uma promoção.

O motorista, trabalharia no estrangeiro. Muitas aventuras, novos corações e emoções. Porém, seu destino jazia em desavenças. Lá assistiu a corações empedrados e a outros desesperados. 

Recolheu corações partidos, destroçados e chamuscados. Quase não houve entrega. Abatido,  sentiu seu coração se  amiudar, tal qual, o de um ((colibri)).

 

 

02/07/2023 COPYRIGHT

6 vidas.png

Lilian Amaral

 

 

A vidente do Beco do Batman disse que terei mais seis vidas. Fiquei injuriado. Se uma já me deixa extenuado, imagine mais seis.

Saltito pelos telhados matutando. Avisto a pracinha do fundador Gerônimo Dias. Deslizo para o muro e a calçada. Atravesso a avenida no pique. Um ônibus arranca do ponto de parada e quase leva meu rabo junto.

Na praça, mergulho num canteiro de sempre-vivas para me esconder do cão que revira uma lata de lixo tombada. Espero ele partir e escalo feito um raio o obelisco do chapeludo. Na placa de bronze está gravado o nome do bandeirante e a data de edificação da cidade, mas me interesso apenas por seu chapéu, onde tomo banho de sol pelas manhãs.

  

Quando o bronze do busto fica desconfortavelmente quente, salto e disparo, cruzando a praça até a igreja de São Francisco.  Dizem que o santo gostava de animais, em seu altar há imagens de cães e cabras.  Não há gatos. De raiva, enrodilho-me em seus pés para o soninho do meio-dia.

No fim da tarde, acordo com o aroma do hot dog estacionado em frente ao antigo cinema, hoje Centro Cultural Altina Assis, palco agradável de música aos fins de semana. Sigo empoleirado no muro da igreja até o carrinho de lanche. Não desço do muro, pois dois cães pulguentos estão ali mendicantes. Balanço o rabo sedutoramente e solto meu miado mais manhoso para dona Rosa, que me lança nacos de salsicha, enquanto os cachorros se matam de latir.

Sinto o ventinho gelado do anoitecer. Avanço pelo muro até o vitrô da biblioteca municipal e pulo para dentro, driblando as fileiras de estantes. Esgueiro-me até a mesa de seu Geraldo, o bibliotecário mais famoso da região, que sabe contar de cor e salteado a história do município.

Acomodo-me ao lado dele, em uma caminha de pelúcia que ele mantém ali para que eu possa repousar meu corpinho fatigado e me preparar para as próximas seis vidas.

24/06/2023 COPYRIGHT

NA PRAÇA.png

Lilian Amaral

 

 

Abandonados sobre um banco ensolarado, dois deles (um homem e uma mulher) acomodam-se no amanhecer; enquanto um outro, aparentando ser mais jovem, espicha-se sobre o colo do casal, como um lagarto à calidez luminosa. Irmãos, amantes, amigos? Impossível saber. Porventura sejam tudo ou nada disso.

Ostentando camadas e camadas de roupas, a dupla sentada exibe cabelos de um castanho sem cor e empastados. Os olhos? Não revelam. Apenas uma sombra escura se estende até o nariz. A pele, de um tom vermelho acinzentado, parece cozida e áspera. A expressão, os sentimentos? Guardados.

O rapaz que se esparramou sobre o colo dos companheiros tem os cabelos de um quase preto, encaracolados, com cachos para todos os lados. Sorri e fala bastante alto de coisas (talvez) sem sentido. Seus olhos estão tão vermelhos quanto sua pele, mas dele se desprende uma cintilação, um êxtase, que não há nos outros. Quem sabe, uma alegria advinda do corote em sua mão.

 

Dormitados ao relento, os três são os sobreviventes de uma madrugada de junho que abismou próximo dos seis graus Celsius.

18/06/2023 COPYRIGHT

ributo às irmãs Galvão.png

Lilian Amaral

 

 

Não! Elas não cantavam.

Não! Elas não tocavam qualquer instrumento

nem gostavam de música.*

 

Dia triste. Ao lado de você, concluo meu discurso no funeral das saudosas gêmeas Deuci e Neuci Galvão. Como delegado, não pude deixar de homenagear as irmãs que se dedicaram até seus 73 anos ao Departamento de Investigação Criminal, deixando apenas um último caso sem solução.

Talvez você não saiba, mas no dia do trágico acidente, as gêmeas, na reunião de praxe, revelariam um importante documento no caso do desaparecimento de trinta quilos de cocaína da delegacia. 

Você deve lembrar que as irmãs eram vesgas, uma do olho direito e a outra do esquerdo.  Além disso, tinham aquele estranho costume de uma completar a frase da outra. Deuci, a primogênita, era boa em começos. Neuci, que nascera cinco minutos depois, finalizava a fala da irmã. 

Naquele dia, Deuci começou informando os trâmites da investigação, andando para lá e para cá. Inexplicavelmente, pois a janela estava fechada, uma folha do processo voou da minha mesa e aterrissou sob seu pé esquerdo, fora de seu campo de visão, já que ela sempre mirava a direita. E, como a idosa já não tinha bom equilíbrio, acabou escorregando e batendo a cabeça. A morte foi instantânea. Neuci completou a ação, deitando-se ao lado da irmã, cerrando os olhos e freando o coração.

Ainda estarrecido com tal infortúnio, ao lado de você, deixo esta coroa de rosas em nome do departamento de polícia e sussurro com pesar: “acidentes acontecem”.

* Não são as famosas Irmãs Galvão da dupla sertaneja do interior de São Paulo formada pelas irmãs Mary e Marilene. 

03/06/2023 COPYRIGHT

Logo Número da sorte.png

Lilian Amaral

 

 

 

À noite, quando caiu na cama, estava morto. As costas lhe doíam um pouco e o braço parecia adormecido.  A canseira era grande, mas a satisfação também. Havia superado sua média naquele dia: 133 porcos. Amanhã faria uma fezinha no 133, seu número da sorte agora. Lidar com a morte era seu dia-a-dia no abatedouro. O sono foi profundo. Às 1h33 acordou com uma forte dor — ela tinha vindo buscá-lo.

21/05/2023 COPYRIGHT

O que não deveria estar ao alcance de uma criança.png

Lilian Amaral

 

1. Um elefante -> pode carregar a ideia de que o poder está só no tamanho e na força.

2. Uma abelha -> pode sussurar a ideia de que viver é só trabalhar.

3. Um cão -> pode manifestar a ideia de que fidelidade é algo só para dar.

4. Um pato -> pode anunciar a ideia de que um “outro” deve pagar pelos seus erros.

5. Uma formiga -> pode espalhar a ideia de que, se pisar, não vai fazer diferença.

6. O pôr do sol -> pode semear a ideia de que haverá um amanhã.

7. As estrelas -> podem revelar a esperança de que existe um lugar para fugir e nunca mais voltar.

8. As noites -> podem engolir seus sonhos e revelar seus demônios.

9. Os dias -> podem sugerir que sempre há um começo e um fim.

10. Os livros -> podem disseminar a ilusão de que tudo é possível.

28/05/2023 COPYRIGHT

A palavra.png

Lilian Amaral

 

 

“Lugar mais bonito de um passarinho ficar é a palavra.”

Manuel de Barros

 

Folheio o dicionário à procura da palavra capaz de guardar um passarinho. Como Manuel, vasculho os vocábulos de primavera em busca de um termo oportuno para abrigar pássaros, palavra de ave, palavra abençoada pela inocência. 

asa (s.f.) – muito curtinha e rasa; além disso, termina com os dentes cerrados.

cantar (v.d.i.) – essa raspa muito a garganta na última consoante.

ninho (s.m.) – também não; mastiga as primeiras letras e recolhe a língua ao final.

voo (s.m.) – assobia entre os dentes inferiores e os lábios superiores, mas não decola.

O aroma de pizza tostadinha, recém saída do forno, e de queijo derretido me chama para a cozinha. Fecho o dicionário e o deixo sobre a mesinha, ao lado do passarinho.

Aproveitando-se da minha distração — o teiú da vizinha guarda o passarinho.

 

13/05/2023 COPYRIGHT

 

 

Lilian Amaral

 

 

O lar ruía calado,

a fachada se mantinha altiva, admirável. Porém, na estrutura brotavam trincas recônditas do piso às paredes, que alcançavam o telhado e seguiam em frente, minando tudo o que um dia jurou ser para sempre. A umidade chegava pela raiz e borbulhava a sólida camada inferior do reboco, que resistia se agarrando à tinta sintética que, outrora nomeada resistente, via arrebitar delicadas peles que esvoaçavam ao forte vento, deixando escapar vestígios minerais que flutuavam feito véu alvo. Para um olhar forasteiro, a casa se pretendia invejável. Um olhar mais atento, talvez, suspeitasse de uma azedinha que rompia num rejunte. 

07/05/2023 COPYRIGHT

logo Casa.png
Nas noites.png

Lilian Amaral

 

O brejo,

antes que rejeitos da indústria rio acima o convertessem em solidão, havia servido a gatos-do-mato, salamandras, cobras-d'água, ratões-taqueiros e rãs.

 

Atualmente,

apenas uma família de agapantos ainda resiste, flutuando sobre a água ácida. Um aroma químico povoa o ar que outrora fora vivenda de libélulas, muriçocas e bicudinhos. Até os salgueiros, os bordos e as palmeiras, suas pernas e braços secaram e apodreceram. 

 

Certa manhã,

imerso em seu desalento, o brejo se encantou com a visita de um jovem moreno que, por horas, contemplou-o com o coração, percorrendo os seus recantos mais fétidos, recolhendo amostras e acarinhando as escassas e amareladas taboas-fogueteiras.

 

Ao entardecer,

atravessando o corpo d’água, d’ságua o corpo moreno do engenheiro florestal, agora sem vida, vindo da indústria rio acima. O brejo acolhe o moço como uma noiva enviuvada recebe seu amado, envolvendo-o em filamentos, fundindo-se ao dorso inerte e embalando-o em   g e  s  t  o  s     l   e   n   t   o   s.

 

Na soturna mata,

sob a cintilação de uma legião de pirilampos bailando em um ondear resplandecente, na noite sem lua, o brejo se ilumina como se fosse dia.

30/04/2023 COPYRIGHT

Nas noites.png

Lilian Amaral

 

O brejo,

antes que rejeitos da indústria rio acima o convertessem em solidão, havia servido a gatos-do-mato, salamandras, cobras-d'água, ratões-taqueiros e rãs.

 

Atualmente,

apenas uma família de agapantos ainda resiste, flutuando sobre a água ácida. Um aroma químico povoa o ar que outrora fora vivenda de libélulas, muriçocas e bicudinhos. Até os salgueiros, os bordos e as palmeiras, suas pernas e braços secaram e apodreceram. 

 

Certa manhã,

imerso em seu desalento, o brejo se encantou com a visita de um jovem moreno que, por horas, contemplou-o com o coração, percorrendo os seus recantos mais fétidos, recolhendo amostras e acarinhando as escassas e amareladas taboas-fogueteiras.

 

Ao entardecer,

atravessando o corpo d’água, d’ságua o corpo moreno do engenheiro florestal, agora sem vida, vindo da indústria rio acima. O brejo acolhe o moço como uma noiva enviuvada recebe seu amado, envolvendo-o em filamentos, fundindo-se ao dorso inerte e embalando-o em   g e  s  t  o  s     l   e   n   t   o   s.

 

Na soturna mata,

sob a cintilação de uma legião de pirilampos bailando em um ondear resplandecente, na noite sem lua, o brejo se ilumina como se fosse dia.

30/04/2023 COPYRIGHT

Lilian Amaral

 

 

 

Enquanto o sol fugia

para se deitar com o horizonte,

o rapaz checava se

a casa estava

devidamente trancada,

se todos estavam

em suas camas

e se tudo estava

em silêncio.

Então,

ele se retirava

para seu quartinho,

despia seu libré,

se ajeitava na cama

e adormecia.

 

Em sonho,

o rapaz empurrava o

pequeno sofá

de chenille vermelho,

xodó da patroa,

vale acima até

o pico luxuriante.

Lá,

ele se aconchegava

no veludo rubro

e esperava pela lua.

Sob o resguardo

negro da noite,

eles se enleavam

até povoar todo o céu

com pueris estrelas.

Depois,

adormecia.

 

Ainda em sonho,

o rapaz despertava

com o grasnar de uma águia,

o sol ainda a se espreguiçar.

Descia a colina

amparando o sofá

por uma de suas laterais

e depois o empurrava

vale abaixo até a mansão.

Lá, o reposicionava

na sala de visitas,

como se ele nunca

houvesse saído dali. 

 

Então, 

quando novamente

o sol se entregava

aos braços do horizonte,      

ele checava se

a casa estava segura

e todos em suas camas.

No silêncio,

se retirava

para seu quarto,

se despia e

adormecia.

 

Enquanto

reavivava a noite,

desejosa,

a lua esperava

pelo sonho

dele.

01/04/2023 COPYRIGHT

Perdas Logo.png

Lilian Amaral

 

 

 

Empoleirada nos rochedos, ela observava o mar com espanto e medo.

No início, apenas caminhamos pela areia colecionando conchinhas. Quando, corajosamente, ela esticou o pequeno pé esguio para que fosse lambido por uma marolinha, abriu um sorriso do tamanho da praia. Experimentou, então, avançar mais um passo e seu sorriso desapareceu mais rápido do que a areia se moveu sob seus pés indo em direção ao mar. Um estrépito — Paaiii — escapou. Agarrei-a, abraçando-a forte.

No dia seguinte, fizemos uma nova tentativa. Frente a frente, coloquei seus pezinhos sobre os meus e caminhamos até a beira d’água. Sobre as bolhas de espuma da maresia, dançamos      ao som das cantigas que ela cantarolava extasiada. Aos poucos seus dedinhos, que a princípio pareciam garras cravadas em meus pés, foram relaxando e se soltando, até deslizarem para a água. E ela, sem medo, começou a rir, rir, rir.

 

 

 

No consultório, o alarme tocou, sinalizando que a sessão havia acabado.  Seu Jorge se despediu escondendo o olhar emocionado. Foi então que me escapou a pergunta: “Sua filha está agora com quantos anos?”

Ele não respondeu. E eu entendi.

Pedi para minha secretária remarcar o horário do próximo paciente para outro dia. Entrei no carro para voltar para casa, mas antes não pude deixar de passar para dizer um olá para minha miúda.

Era o final de um dia ensolarado. E, sobre sua pequena lápide de mármore branco, os peixinhos niquelados reluziam diante de um jardim de margaridas.

16/04/2023 COPYRIGHT

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LIMÕES.png
doce limão 3.png

Lilian Amaral

 

Rodeei minha avó na cozinha, alternando entre o fogão e a pia, espiando sua magia de transformar o azedo em delícias.

  

— Vovó, me ensina a açucarar a vida? Como faço para converter limão em doce? Hoje perdi meu emprego, preciso caramelar minhas feridas.

 

— Mãos à obra, filha: 

 

 

 

 

1 pacote de bolacha de maisena

3 colheres de manteiga

1 lata de leite condensado

1 lata de creme de leite

½ lata de suco de limão

Triture a bolacha com a manteiga até formar uma massa bem fina. No pirex, molde a base. Leve ao forno por vinte minutos. Na batedeira, vão o leite condensado, o creme de leite e o suco de limão. Bata até o creme crescer na tigela. Sobre a base resfriada, acomode o doce azedo.  Finalize com raspas sicilianas.

 

 

 

 

A torta enternece entre os dentes, o doce se apega ao céu da boca, o azedo toca a banda profunda da língua, dispara contração e arrepios.

 

— Na vida há muitos limões. O azedo nunca some de vez. Leve a magia contigo, minha filha. Mas, antes, quer lamber a tigela?

 

 

09/04/2023 COPYRIGHT

Lilian Amaral

Um macaco descansa sobre um galho alto da mangueira. Debaixo da frondosa árvore, uma vaca pasta os brotos do capim ralo e macio. O macaco pode ser um sagui, um mico ou um macaco-prego, não dá para ter certeza a esta distância.

O macaco, tomado pela preguiça da tarde, espia a vaca de esguelha. O robusto animal segue, sem fazer pausas, ruminando a folhagem verde-clara com tanto gosto que dá até certa inveja.

O macaco se ressente da vaca. Não que ele deseje ruminar capim. Apenas cobiça a sorte dela por ter o alimento que tanto aprecia à disposição o ano todo, enquanto ele sempre precisa esperar pelo verão para a frutificação da mangueira. E, por apenas três míseros meses, pode se deliciar com as suculentas iguarias.

    

Voltando a contemplar as nuvens, o macaco alisa a barriga oca, que agora ronca acusando a fome. E, depois de muito resmungar, maldizendo seu destino e a megera mãe natureza, cerra os olhos e dormita no desejo de que os meses se sucedam rápido.

Mesmo faminto, o macaco não sai da mangueira. Não estica os olhos para as outras árvores. Permanece ali, inerte, na expectativa.

Do meu galho, a alguns metros do macaco, não me resigno com a espera, embora eu também seja um grande apreciador da doçura das mangas maduras. Em vez disso, aventuro-me por outras árvores em busca de frutos de época, em busca da boa sorte.

© Copyright 25/03/2023

Lilian Amaral

 

 

Nas páginas iniciais do álbum da família, meu pai enfileirou seus ancestrais mais ilustres: 

 

      um desenho do hexavô, oficial das caravelas de Cabral

      um desenho do pentavô bandeirante, companheiro de Domingos Velho

 

      uma pintura do tetravô, conselheiro de D. Pedro II

   

      uma estampa do trisavô, articulista do marechal Deodoro da Fonseca

  

      uma estampa do bisavô, oficial de Getúlio Vargas

   

      uma foto do avô, projetista de Juscelino Kubitschek

   

      uma foto de seu pai, articulador do movimento Diretas Já    

 

 

Essa teria sido sua árvore genealógica dos sonhos, se meu pai, ainda miúdo, não tivesse sido encontrado por um grupo de retirantes, vagando sozinho em meio a aridez do Cariri, na Paraíba. E, alguns dias depois, encovado e ensolarado de morte, fosse abandonado em um vilarejo na periferia de Crato.

Sem raízes, meu pai narrou um passado para si ao longo da vida e colecionou imagens para ilustrá-lo. Apadrinhado por antepassados ousados, conquistou tenacidade e perseguiu sonhos.

 

Hoje, após seu funeral, acrescento ao álbum a foto de meu pai na inauguração do seu primeiro restaurante. E, como nutricionista no Projeto Fome Zero, talvez um dia, meu filho também possa adicionar a minha.

t

© Copyright 18/03/2023
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Lilian Amaral

 

 

Ao chegar em casa e desmoronar na poltrona, Clara sorria ao recordar o semblante satisfeito da editora-chefe quando esta aprovou sua ideia para a edição comemorativa do Dia das Mães.

Com o corpo aconchegado no chenille suave, entregue àquele momento de prazer tão almejado, achou que era uma boa hora para ligar para a irmã e compartilhar as boas novas.

— Acabei de sair de uma reunião com o pessoal do suplemento feminino e eles aceitaram publicar a história de sucesso da mamãe com a Carmela's Moda na edição especial de maio, com foto na capa e tudo. Um presente perfeito para os oitenta anos dela, não?

— Claro, darling, um afago no ego da sua mamãezinha querida é sempre bom — respondeu Virgínia em tom irônico.  

— Nossa, como você está azeda. Aconteceu alguma coisa?

— Aconteceu o de sempre. Veja bem, Clara, tô com um milhão de pedidos da Carmela’s para terminar de faturar aqui, enquanto nossa mãe faz o social e você brinca de jornalista. O que acha?

— Eu acho que você escolheu fazer o que faz. Depois, você sabe que mamãe anda com a saúde frágil e a mente confusa, por isso está de repouso. Você também sabe que eu trabalho duro na revista para pagar as minhas contas e não dependo da Carmela's para nada.

 — Veja bem, Clara, eu estou com uma sobrecarga de trabalho aqui. Sinto muito se não tenho tempo para as suas bobagens.

— Ok. Só achei que você ficaria feliz com a notícia da publicação, mas não quero atrapalhar ainda mais seu trabalho — já ia desligando o celular quando percebeu que Virgínia continuava a conversa.

—Clara, antes de você enviar esse artigo à revista, quero que você me envie o arquivo para que eu dê uma olhada, ok?

— Tudo bem — respondeu de má vontade —, envio uma cópia ainda hoje à noite. Assim podemos conversar sobre ele amanhã, na casa da mamãe. Você vai para o almoço?

— Sim, vou sozinha. O Sérgio e os meninos vão para a casa da bruxa da mãe dele.

— Ok, até amanhã, então.

Faturar pedidos? A única coisa que Virgínia sabia fazer no computador era bisbilhotar as redes sociais.  Olhando fixamente para além da varanda do apartamento, Clara viu quando a primeira estrela despontou no céu. Mesmo num céu carregado e poluído como o daquele início de noite, uma única estrela conseguiu superar todas as dificuldades e brilhar em meio às adversidades — assim como sua mãe.

Sentada na mesa de trabalho diante do notebook, ela ainda observava o céu e ponderava como escrever a trajetória de sessenta anos de conquistas da mãe. Como levar isso para o mundo da moda em seis mil caracteres?

Carmela Vianna havia começado sua empresa aos vinte anos quando, sem nenhuma experiência no comércio, assumiu a pequena loja que o marido ganhou dos pais no casamento deles. Era um pequeno brechó, úmido e degradado. Arnaldo, bonito e bem educado, era um jovem poeta que não tinha talento para negócios. Já no primeiro ano de casamento, a mãe salvou a loja da falência, com muito esforço e bom gosto, quando ainda amamentava e trocava as fraldas da primogênita recém-nascida.

Assim, Carmela, entre os lançamentos da moda feminina e os brinquedos das meninas, criou a Carmela's Moda e as duas filhas, enquanto o marido bebia seus versos.

O almoço do dia seguinte chegou rápido, porém, não tão rápido como Virgínia entrou no apartamento da mãe naquela manhã. Como um furacão com potencial de destruição, a filha mais velha invadiu a cozinha esfacelando o clima de camaradagem familiar entre a mãe, a irmã caçula e Dora, a cozinheira.

— Você não vai publicar esse artigo! — gritou Virgínia.

— O quê? — questionou Clara enquanto fechava a porta do forno que acabara de espiar.

— Meu Deus! O que aconteceu, filha? — interveio a mãe, assustada.

Sem nem olhar para a mãe e com os olhos espetados em Clara, Virgínia rosnou:

— O que aconteceu? Pergunte, pergunte pra essa daí, que quer destruir a memória do meu pai.

— Você tá louca, Virgínia? Eu nem cito o nome do papai no artigo — defendeu-se Clara.

— Isso mesmo! É tudo conquista da sua mamãezinha: as lojas, o sucesso, o prestígio, até a criação das amadas filhas. E o papai? De quem era a loja?

— Você sabe muito bem que ele ganhou a loja de presente porque não sabia fazer nada na vida. E, se não fosse a mamãe, a loja teria ido à falência.

— Papai era um artista, ela esmagou o espírito dele ao atender os caprichos das clientes arrogantes. Ele tinha orgulho e não merecia perder o comando da loja — retrucou Virgínia com a voz vacilante e os olhos líquidos. 

— Você tá brincando, né? Aquele lá vivia com a cabeça no mundo da lua, quando não estava enfiada no fundo de uma garrafa.

— Ele era assim por causa dela — acusou Virgínia, apontando para a mãe.

Carmela assistia à discussão das filhas sem compreender o que estava acontecendo, sua cabeça estava confusa, seu coração, acelerado, um punho lhe estrangulava o peito. Tentava entender a cena a sua frente. Sentiu as mãos quentes e firmes de Dora lhe acariciando os ombros, e uma voz terna e familiar cochichar ao pé do ouvido, para que a acompanhasse até a sala, onde estava mais tranquilo.

Tentou erguer-se, mas as pernas não a obedeciam. Com o apoio de Dora, Carmela agarrou firme nos antebraços da companheira fiel e a seguiu até a sala. Lá ela sentou em sua poltrona predileta, frente à varanda envidraçada.

Dora pediu que aguardasse ali enquanto ela voltava à cozinha para tentar acalmar os ânimos das meninas. Carmela concordou com um aceno de cabeça e ficou quieta.  Contemplou uma imagem de mulher no reflexo da vidraça. Já não tinha mais o frescor da juventude, o rosto agudo, o nariz caucasiano. A boca pequena e estreita formava um conjunto arrogante. Não reconheceu quem era aquela outra. Será que era por causa dela que as filhas discutiam? E quem era o poeta? O único poeta que ela conheceu foi Arnaldo. Sentia saudades do seu Arnaldo, da sua fala doce e macia.

Recordava-se da caxemira azul turquesa que ele vestia na noite em que ela lhe disse o sim. Guardava na memória, com carinho, seus versos de amor, seus beijos suaves, seus abraços afogueados. Também se lembrava da aflição do marido quando este esquecia de comprar o leite da bebê, quando esquecia de pagar a conta de luz, quando somava errado a fatura de uma cliente. Este era o seu Arnaldo, que estava sempre a devanear e a escrever versos, até a cirrose o levar.

Voltando a contemplar a imagem da mulher no reflexo da vidraça, se perguntou para onde teria ido aquela jovem enamorada cantada em versos pelo marido. Não se lembrava mais o que tinha acontecido. A mulher que via agora no reflexo ela desconhecia.

O peito continuava apertado e ela precisava de mais ar. Levantou-se com cuidado, apoiando-se nos braços da poltrona, e seguiu entre passos inseguros para a varanda da cobertura. Depois de segurar com firmeza na balaustrada de mármore, percorreu com o olhar a perfeita limpidez do céu de outono em contraste com a massa cinzenta de prédios que marcavam a linha do horizonte. Desceu o olhar e contemplou o tapete verde do bosque vizinho ao condomínio. Mais abaixo, viu a larga alameda de pedras portuguesas ladeando a fachada do edifício. À frente, na pequena pracinha, um pontinho azul turquesa lhe chamou a atenção, parecia ser um homem sentado no banco ao lado do grande carvalho.

Estreitando mais o olhar, reconheceu Arnaldo com sua caxemira macia. Sim, aquele era o seu Arnaldo.

Apoiando o peso de seu corpo na gélida balaustrada, ficou nas pontas dos pés e esticou-se toda para lhe acenar — enquanto arqueava-se para o vazio.

© Copyright 12/03/2023

Lilian Amaral

 

Era hora do passeio matinal.

O dono deveria circular com ele pela praça e deixá-lo farejar os arbustos peido-de-véia e os canteiros de rosas. Atualizar seu banco de memória aromático, reconhecer o xixi dos amigos e identificar os novos cães do pedaço.

 

O dono, pacientemente, deveria aguardar que ele marcasse o território com seu espesso jato. E, assim, eles seguiriam passeando.

Contudo, naquele dia, o passeio não estava acontecendo. O dono, logo que pisou na praça, ficou hipnotizado por uma exposição de arte que estava ocorrendo. O rapaz parou na frente de cada cavalete e ficou, ficou, ficou tempos contemplando as imagens reproduzidas nas telas e o esqueceu.

Não adiantou ele tentar se soltar da guia para se aproximar de um arbusto ou alongar seu focinho para farejar os aromas ali despejados. Estanque, conversando com o artista, o dono nem se moveu, indiferente às necessidades do animal.

Depois de um tempo, após várias tentativas frustradas de seguir com o passeio, esparramou-se sobre o piso de lajotas da praça, bem ao lado da escultura de uma esbelta gata preta cinzelada em ardósia. Apoiou a cabeça na almofadinha de veludo vinho que sustentava a estátua, fechou os olhos e se entregou ao desânimo.   

    

A gata esculpida, insultada com a petulância do outro e acreditando que ninguém veria a sua arte, em um lampejo de vento, cravou suas garras no focinho do cão, que soltou um ganido, ergueu-se num salto e buscou por todos os lados o algoz de sua dor, ignorando a gata que não ostentava o aroma felino.

Porém, uma andorinha, que se alimentava em um galho de araçá da pracinha, testemunhou o ataque de ciúmes da gata.

 

 

© Copyright 05/03/2023

Lilian Amaral

 

 

BLECAUTE!

 

No banheiro do ginásio, pelo reflexo do espelho, ela vê o fulgor da lua cheia espreitar pelo vitrô às suas costas. Uma sutil luminosidade desenha sua silhueta. Enquanto, à sua volta, o banheiro e      sua imagem espelhada são engolidos pela escuridão.

Na infância, ela havia sido uma criança espantada. Coisas a perseguiam. Pesadelos roíam. Miúda, nunca permaneceu só em um banheiro público. Os vultos ocultos nas cabines. As molas de portas rangendo. O pingar das torneiras desgastadas. O cheiro ardido de esgoto e desinfetante.  O espelho, a Loira.

Na escola, por vezes urinou na cadeira. Quando não encontrava uma amiga disposta a acompanhá-la ao banheiro, não ia. No escuro, nem em casa ia. E jamais, jamais se olhava no espelho, assombrada pela noiva defunta com chumaços de algodão roxo no nariz e boca.

Agora, adulta, ela era a responsável por acertar os últimos detalhes do desfile de noivas que aconteceria no dia seguinte. Encerrados os ensaios, todos estavam saindo do clube      quando ela sentiu que não ia conseguir segurar o xixi. Retornou ao banheiro e, com os dedos agitados, apertou mais de uma vez o crucifixo que trazia no cordão de ouro.

Quando sucedeu o apagão no ginásio, ela olhava para a cintilação da lua no espelho. Foi quando a medalha lhe escapou dos dedos e o seu cordão foi bruscamente puxado para trás, comprimindo seu pescoço. A lua cresceu em seus olhos e crateras de sangue transbordaram, riscando o céu. Linhas vermelhas e negras espiralaram feito vórtice — sugando-a.

O guarda noturno, que fazia a ronda, a encontrou desacordada no chão. Ele a ajudou      a levantar      e a se recompor. Então, ela deu a desculpa de uma crise de estresse e dispensou socorro médico.

Após ele a acompanhar até o estacionamento do clube, ela não entrou no carro. Seguiu caminhando.

Seguiu caminhando até a Lua, agradecendo pela alma da

moça loira,

que apareceu solitária

no banheiro.

© Copyright 26/02/2023

Lilian Amaral         

 

 

Sem apetite,

ainda remexia a sopa

quando viu uma pequena mosca  sobrevoar seu prato.

Não pensou duas vezes — esticou a língua e engoliu com gosto.

© Copyright 19/02/2023

Lilian Amaral


 

A manhã ainda carregava o cheiro de uísque e éter da noitada. Com as mãos trêmulas, agarrou uma caneca de café e observou, por trás da cortina, o exterior desbotado pela intensidade do sol. Notou um pardal pousado frente à vidraça, a pequena ave bicava insistente seu reflexo no vidro espelhado, como se desejasse ferir a própria imagem.

— Termine logo com essa bebida, que eu quero testar esses acordes! — resmungou o baixista. 

Observando o dia esmaecido, ignorou a reprimenda do colega e puxou um comprido respiro. Agora, embriagado pelo aroma intenso do café, se assustou quando o calor açucarado lhe picou a língua. Um véu aquoso turvou-lhe a visão e ele engoliu um “ai!”, como se o diminuto gemido pudesse revelar ao mundo seu interior.

O produtor, que andava pra lá e pra cá segurando o celular colado ao ouvido, se aproximou dele e sussurrou:

— Por favor, Astro! — apontando em direção aos outros integrantes da banda que já se encontravam em suas posições. 

Como ele continuava imóvel diante da vidraça, o produtor abaixou o celular e encarou o semblante vazio do cantor, dizendo:

— Você tem que sair dessa, cara! Aquela louca sumiu, e daí? Deve ter voltado pro planeta dela, seja lá onde for essa porra! E nós temos um show pra fazer amanhã, vamos lá?

A mera referência a ela fez com que ele cerrasse os maxilares em uma contração dolorosa, enquanto seus olhos trilharam uma caçada pelo céu em sua busca. O produtor suspirou, encolheu os ombros, empunhou novamente o celular e afastou-se, arrastando os passos. 

Protestos e imprecações popularam o interior da sala de ensaio, até serem calados pelo estrépito da campainha, que se propagou absoluto por longos segundos. 

Lívido, ele recuou alguns passos da janela e arregalou os olhos para a porta. Viu-se, então, enredado pelo pressentimento dela. Sentia-a tão próxima, como se já pudesse tocá-la — sua suavidade, seu calor, seu perfume! 

A sala foi ficando embaçada, todos deixaram de existir ao mesmo tempo que a presença dela se alastrava pelas paredes, pelo teto, pelo chão, engolindo tudo num enlevo doce. Quis avançar e se lançar a ela, cambaleou. Estendeu os braços para tocá-la e fazer do pressentimento algo real, mas seus dedos afundaram num vazio feito um precipício. 

Solto no tempo e no espaço, seu corpo elevou-se na singeleza do ar como partículas voláteis.  Uma intensa luz absorveu seu espírito e ilibou o seu corpo. O pardal voou. 

Ante a sublimação, um ganido lhe escapou da boca: 

Nãoo... — enquanto o astro ascendia, o homem caía.

© Copyright 12/02/2023

Lilian Amaral

 


 

Do lado de cá, Joana observa o Velho cruzar a avenida até a pracinha em um sobe e desce rítmico como se possuísse molas nos pés. O sujeito inclina o tronco para frente, dando a impressão de que a cabeça tem mais pressa que o corpo. Alto e com ossos pontudos, sua figura a faz lembrar de um louva-a-deus.

Do lado de lá, mesmo antes de chegar na praça, o Velho avista a dona que passeia com seu cachorrinho usando um traje esportivo justo, como se ainda fosse boazuda.

Daqui, ela assiste ao homem alcançar o banco sob o flamboaiã e se esparramar, todo dono do pedaço. Sobre o gramado, seus cães pulguentos o cercam como súditos.

De lá, ele olha a mulher rebocar pela praça o pobre animalzinho que, com pernas curtas e uma pança que chega até a grama, caminha espremido em uma coleira azul cheia de frufrus. Imagina que, como a dona gosta de se apertar em legues, também acredita que o seu rechonchudo salsicha aprecia passear estrangulado daquele jeito.

Aqui, Joana se ressente do sujeito ocupar aquele lado da praça e ela ter que se restringir a este canto por temer que os cães dele ataquem seu pequeno Eros.

Lá, o Velho curte o sol do começo da manhã rodeado por suas cadelas enquanto fuma. Até dá um trago mais longo quando a dona se abaixa para recolher o cocô do cão.

A mulher, por sua vez, ao erguer-se e cruzar o olhar com o homem, se enrijece.

Ele sorri com escárnio.

<<... suspiros...>> 

Do lado de cá, um enamorado basset anseia em escapar para o lado de lá e dar uma cheiradinha naquelas gostosuras peludas. 

Do lado de lá, estendidas sob o sol que banha o gramado, as cachorras vira-latas do Velho admiram à distância o atraente macho que rebola o traseiro gorducho com o viril rabo em riste. 

© Copyright 04/02/2023

Lilian Amaral

 

Com gestos mecânicos e rápidos, ele se serviu do guisado e da salada.

— Muito bom, a textura tá ótima. Parece até a carne que sua mãe fazia quando a gente namorava. Sabe, Camila, eu ainda lembro do cheiro suculento do cozido dela. Eu adorava aqueles almoços de domingo na sua casa. Na minha mãe, nunca tivemos almoços como aqueles. Você lembra? Hein, Camila?

Com movimentos delicados e atentos, ela se servia devagar, arrumando a pequena porção de cubos de carne e os legumes bem no centro do prato. Depois, cobriu tudo com o espesso molho marrom.

— Sim. Claro que sim, querido — respondeu enquanto pousava com cuidado a travessa na mesa.

Ao erguer o olhar para o marido, Camila viu que um guardanapo pendia em um dos cantos de sua boca. Encontrando os olhos dele, recebeu um arquear de sobrancelha desafiador e, então, ele começou a mastigar a ponta de tecido branco que segurava entre os dentes, mantendo os olhos nos dela.

— Por favor, não faça isso, amor. Deixe esse guardanapo na mesa. Há tanta comida no seu prato, experimente mais um pedaço da carne, tá uma delícia, bem molinha.

Com o cenho franzido e um olhar enviesado, ele cuspiu o guardanapo de volta no colo.

— Se eu comer essa comida, vou engordar e ficar com uma barriga maior que a do seu pai. Lembra de como eu era magrelo, Camila? Você até dava risadas das minhas pernas finas quando a gente ia à praia. Lembra? Lembra de como você adorava me criticar?

— Não lembro de nada disso, querido. E eu sempre gostei das suas pernas.

— Mentirosa! — ele ruminou enquanto revirava lentamente a comida no prato, separando os legumes para um lado e a carne para outro.

 

— Não gosto das batatas e nem das cenouras, por que você não faz guisado sem elas?

— Sem os legumes, isso não seria um guisado, amor.

— Então, não quero que você faça mais guisado para o jantar. Nunca mais quero comer guisado na minha vida — disse ele, elevando o tom de voz e empurrando bruscamente o prato para o centro da mesa.

— Coma pelo menos a salada, querido — ela falou em voz baixa, parando de comer na sequência.

— Eu é que sei, viu! — ele estrilou. Depois adoçou um pouco a voz e continuou. — Acho que eu preciso de uma dose para abrir o apetite e conseguir engolir essa porcaria. Onde você escondeu minha garrafa, Camila? Camila, você tá me ouvindo? — insistiu, apoiando os braços em riste na mesa, elevando ainda mais a voz.

Como ela não respondia, apenas olhava para o próprio prato, ele se levantou, derrubando a cadeira. Com os olhos estalados, começou a seguir de um lado para outro na sala de jantar, gesticulando e resmungando, num andejar frenético.

— O problema, Camila, é que você acha que pode mandar em mim. Você acha que eu não percebo que você quer me manipular com essa vozinha melosa, hein? Desde que começamos a namorar, você se intromete na minha vida, tentando controlar tudo. Esconde minha garrafa e pensa que me engana como a minha mãe. Não esqueça do que aconteceu com ela.

— Sinto muito, amor — sussurrou ela ao se encolher no assento da cadeira, como se quisesse se enfiar sob a mesa.

Sem dar atenção ao murmúrio dela, ele continuou seu agitado vai-e-vem até que estancou os passos. Agora, com um semblante animado, voltou-se novamente para a mesa de jantar — mirando as costas e o pescoço dela. Sorriu como se tivesse, enfim, encontrado a solução para seus tormentos.

— Eu é que sinto, Camila!

© Copyright 28/01/2023

Lilian Amaral

 

 

Você pode me emprestar seu batom? Veja, meu bem, como meus lábios estão ressecados, até um pouco rachados.

— Cla-Claro.

— Ah, meu amor, muito obrigada! Sei que é desagradável emprestar algo tão pessoal como um batom para uma desconhecida com quem você cruzou num banheiro público, por isso a vovó aqui fica muito agradecida mesmo.

— Ok.

— Linda essa cor, combinou com meu gorro, não acha? Até suavizou um pouco o tom amarelado da minha pele.

— Aham.

— Você vai usar a cabine? Eu vou, mas você pode ir primeiro que eu espero. Na minha idade, a gente já não tem mais tanta pressa na vida.

— Imagina, por favor, a senhora primeiro.

— Ah, meu anjo, como você é educada! Não é sempre que eu encontro uma jovem tão gentil.

— Senhora? Faz quinze minutos que entrou na cabine, tudo bem aí?

— Claro, claro, querida. Já vou sair. Paciência com a vovó. Sabe, eu ainda me lembro de quando eu era jovem e de como eu era apressada com tudo. Os jovens são sempre tão ansiosos.

— Não é uma questão de ansiedade, senhora, é que estou bem apurada e preciso usar a cabine agora.

— Já, já estou saindo, filha. Seja mais benevolente com a vovó. Sabe, meu amor, vou lhe contar uma coisa… Os medicamentos para a hepatite que eu estou tomando me dão um pouco de diarreia, mas já estou quase terminando, querida.

© Copyright 22/01/2023

Lilian Amaral

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Quando a jovem esposa do padeiro chegou balançando a cintura fina e o traseiro espoleta para visitar o marido e cobri-lo de beijinhos — o espelho da vitrine suspirou.

Com o crescer dos anos e o crescer da cintura e do traseiro da esposa do padeiro, também cresceu a paixão do espelho, que se esticava todo para abarcar tamanha belezura.

Chegou o dia em que, de tanto se espichar, o enamorado espelho transcendeu, assim como a esposa do padeiro.

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 a.  (   )           b. (   )          c.  (   ) 

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 (a). Naquela noite, o Jornal Nacional noticiou o caso do tristonho padeiro que, ao perder a esposa, engoliu um pão italiano rústico em um só bocado e acabou entalado.

 

(b). Naquela noite, o Jornal Nacional noticiou o caso fatídico do padeiro que, ao perder a esposa, foi atingido por um estilhaço de espelho bem no meio de suas partes baixas.

 

(c). Naquela noite, o Jornal Nacional noticiou o caso do sortudo padeiro que, ao perder a esposa, foi amparado por incontáveis moçoilas casadouras que o cobriram de beijinhos.

© Copyright 15/01/2023

Lilian Amaral

 

               

Ele era um jovem macho sugador com um grande potencial reprodutor. Necessitava pensar no futuro e buscar uma nova fonte de alimento que atendesse as suas aspirações de formar uma grande família. Precisava de sangue mais quente e encorpado, não aquele sangue ralo e morno de Sofia, sangue de quem come ração light para manter o peso. Além disso, já não aguentava mais os banhos de língua melosos e nojentos da gata.

Tendo isso em mente, em uma manhã ensolarada, ele não pensou duas vezes antes de saltar sobre os pelos ásperos e grossos de Trovão, que aproveitou a ida de Sofia ao telhado para tirar uma soneca no tapetinho rosa e felpudo dela.

Glub! Glub! Hummm. Que néctar dos deuses!

Ainda se esbaldava na deliciosa iguaria quando quase foi esmagado por uma pata pesada. Depois de se esquivar dos sucessivos coices do cão, teve que se agarrar com firmeza quando este sacudiu com força sua pelagem.

Empanturrado como estava de sangue e ainda buscando se recuperar da brutalidade, ouviu um estridente grito de guerra ecoar pela sala. Viu passar raspando as garras afiadas da pata de Sofia, que cravaram com violência a carne de Trovão.

Deus nos guarde! Depois disso, foram só sacudidelas e um rolar de corpos peludos por todos os lados. Quando deu por si, sua estrutura minúscula estava sendo lançada para o outro lado da sala, e não acreditou na sorte que teve quando se viu aterrissando sobre os pelos suaves de Mingau. O gato mal despertara de seu cochilo matinal, ainda mantinha-se estendido sobre seu tapetinho azul felpudo enquanto espiava de longe o entrevero que se dava entre Trovão e Sofia.

O sangue de Mingau não era tão bom como o de Trovão, mas era melhor que o de Sofia, já que o gato bonachão comia tudo que via pela frente. O único inconveniente é que ele teria que continuar suportando os nojentos banhos de língua.

© Copyright 08/01/2023

Mata fechada, mata atlântica. Na trilha, folhas prateadas espelham réstias de sol espectrais. À medida que nos aproximamos do alto do morro, o aroma terroso e úmido vai perdendo intensidade e somos tomados pela maresia.

   

De uma laje de pedra cravada na serra, contemplamos o deslumbre azul do céumar e a estreita faixa de areia branca ladeada por pontinhos coloridos que, como a paleta de um pintor, com muitas cores decoram o entorno.

Depois da longa caminhada, voltamos para a praia e desmaiamos sobre a areia morna, degustando a maresia.  

As crianças brincam de fazer bolinha de sabão com um novo brinquedo que compraram de um vendedor ambulante. Deitado na esteira, vejo o reflexo da paisagem nas bolhas de sabão que flutuam lentamente pelo ar. Olho para as nuvens que crescem no céu quando uma bolha de sabão passa.

A tarde segue fagueira e, mais uma vez, caio no sono. 

Acordo assustado quando minha esposa me chacoalha. Tento abrir os olhos, mas um tufo de areia me cega. O azul do céumar sumiu. Tudo que consigo ver é um pálido véu de areia que encobre toda a praia com força. É o Noroeste.

Catamos o que achamos. O guarda-sol, cadeiras, esteiras e os brinquedos das crianças se foram com o vento. De mãos enlaçadas, corremos para casa. Ao adentrarmos a cozinha, aturdidos, escutamos a porta bater logo atrás. A energia elétrica é cortada e, no escuro, as crianças choram assustadas. 

Depois de um banho longo e frio, nos livramos da capa de areia. Minha esposa faz Toddy e cachorro-quente para as crianças, que, agora tranquilas, limpas e cheias de histórias, conversam alegremente à luz das velas. 

Eu pego meu caneco fumegante de café e me encosto no batente da vidraça para contemplar a tempestade. O véu de areia já se foi e um aguaceiro sem fim despenca do céu, que está cinzento como o mar. Grandes ondas nascem no infinito e seguem furiosas para a praia, explodindo à beira-mar e espalhando uma densa espuma branca.

Mirando o céumar, penso: como pode a natureza, mesmo caótica, monstruosa e destruidora, nos impressionar tanto com a sua beleza?

© Copyright 01/01/2023

Lilian Amaral

 

 

 

Enquanto o sol fugia para se deitar com o horizonte, ele checava se a mansão estava devidamente trancada, se todos estavam em suas camas e tudo estava em silêncio.

Então, se retirava para seu quartinho, despia seu libré, se ajeitava na cama e adormecia.

 

Em sonho, ele empurrava o pequeno sofá de chenille vermelho, xodó da patroa, vale acima até o pico luxuriante. Lá, ele se aconchegava no veludo rubro e esperava pela lua.

Sob o resguardo negro da noite,  eles se enleavam até povoar todo o céu com pueris estrelas. Depois, adormecia.

 

Ainda em sonho, ele despertava com o grasnar de uma águia, o sol ainda a se espreguiçar. Descia a colina amparando o sofá por uma de suas laterais

e depois o empurrava vale abaixo até a mansão.  Lá, o reposicionava na sala de visitas, como se ele nunca houvesse saído dali. 

 

Então, quando novamente o sol se entregava aos braços do horizonte, ele checava se a casa estava segura e todos em suas camas. No silêncio, se retirava para seu quarto, se despia e adormecia.

 

Enquanto reavivava a noite, desejosa, a lua esperava pelo sonho dele.

© Copyright 01/04/2023

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Lilian Amaral

01 de Setembro de 2022

Mairinque  SP  Brasil

* O desenho da ouriço-caicheiro  é  de Altino Lobo e a artefinal  de Lilian Amaral.

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