Naquela manhã, o rechonchudo anão recolheu do assoalho mais um dente do Papai Noel. Isso mesmo, havia três meses que os dentes do bom velhinho começaram a cair. O balde onde os anões guardavam os dentes tombados já estava quase transbordando, enquanto o Papai Noel ia desaparecendo dia a dia. Até mesmo seu traje vermelho já lhe sambava no corpo magro e fraco. Do roliço ancião ia restando apenas um arremedo do que fora antes de ser acometido pela banguelagem. Nem o pastel do japonês da feira o apetecia mais.
Os anões sabiam que o teimoso velhinho estava adiando a visita ao dentista devido ao medo daquele pequeno motor que zune que nem uma abelhinha. Então tiveram que abater o debilitado ancião para levá-lo desacordado até o consultório dentário no turbinado trenó.
Quando o medroso velhinho despertou do chá de camomila que os anões o fizeram beber, o dentista já tinha terminado de fixar uma dentadura nova com dentes pontiagudos e bem afiados. Mesmo assim, tomado pelo pânico por estar sentado na cadeira do odontólogo, o assustado ancião armou o maior berreiro, apavorando as crianças que estavam na sala de espera.
Sem ter escolha, os anões tiveram que nocautear o Papai Noel para dar um fim ao escândalo. E, enquanto o dentista amaldiçoava o desmaiado velhinho por ter espantado sua clientela, os anões carregavam seu esquelético corpo pela chaminé do consultório até o septuagésimo andar, onde estava estacionado o trenó. Cobertos por uma camada de fuligem de meio metro, os anões aceleraram o turbinado veículo para que as partículas de sujeira se dispersassem no ar — e pobre das pombas que tiveram a infelicidade de cruzar com eles.
Embriagados pela alegria de terem cumprido com sucesso a missão “fim da banguelagem”, os anões, naquela festiva madrugada, fizeram uma peregrinação na churrascaria, na doceria, na lancheria, na pastelaria, na padaria e na cantina da nona para que o faminto velhinho pudesse estrear sua dentadura nova.
Empanturrado, o guloso ancião deslizou em sonhos por dez luas esquecendo-se até do Natal. Contudo, não teve problemas, não, os astutos anões, vestidos de vermelho, deram conta do recado.
Projeto verão,
muitas frutas,
muita salada,
muitos legumes.
Tudo pra mim!
Abacaxi, maçã, melão, laranja.
Alface, agrião, rúcula, repolho.
Pepino, abobrinha, berinjela, cenoura.
Tudo pra mim!
Chamei o feirante,
disse aí: — Pesa tudo pra mim!
Projeto verão,
vinte quilos no chão.
Gordura? Não quero mais, não.
Quero cintura,
quadril de sineta.
Tudo pra mim!
— Dona, dá um tostão? — Não tenho, não.
— Dona, dá uma fruta? — Não tem nada, não.
É tudo pra mim!
— Dona, vai se fudê! — Pirralha, some daqui!
É tudo pra mim!
Olhei a pirralha,
sair balançando
o quadril de ninfeta,
a cintura porreta,
a bunda espoleta.
O feirante me chamou: — A dona vai querer mais alguma coisa?
Atônita, respondi: — Pra mim nada, não!
Nada pra mim!
Erva daninha
Lilian Amaral
O garoto não nasceu, apenas brotou.
Cresceu como planta,
erva daninha,
que, com pouco ou quase nada, indesejável e sem função, resistiu às intempéries e, com viço, seguiu firme, ocupando espaço.
Com os cães comeu,
com os cães dormiu,
com os cães brincou.
Com eles aprendeu a sobreviver e a se defender. A se estirar no sol e a se encolher no frio, se esconder da chuva e dos vadios.
Rolou,
embolou,
correu,
saltou. Uma rajada de estrepolia.
Conheceu a fala com quem, por caridade, lhe dirigiu a palavra.
Falava pouco e com dificuldade,
pois não tinha assunto, nem quem o escutasse.
O bilhete premiado no meio fio
alterou sua história
e
lhe atribuiu humanidade.
Recomeçando
Lilian Amaral
De cara amarrada, a nova vizinha da esquina, uma dona de casa, batia o velho tapete no muro. Junto com o pó de décadas, mariposas de diferentes tamanhos e matizes partiam em um voo instável, assustadas com tamanha violência. Atrás delas, fugiam aranhas e baratas em busca de novo abrigo.
Cumprida a limpeza, a dona de casa lançou o grande tapete às costas. Atravessou a rua até o jardim da pracinha e passeou com ele para que borboletas e flores de distintas grandezas e colorações se juntassem à sua trama. Para arrematar a nova estampa, sacudiu-o em direção ao céu, onde pequenos colibris e bem-te-vis vieram de bom grado contribuir com suas cores à nova decoração.
Ao deitar o colorido tapete sobre o assoalho da sala, os olhos da dona de casa pousaram sobre as velhas almofadas do sofá, que foram imediatamente carregadas para o quintal e surradas com o cabo da vassoura até ficarem livres das traças, pulgas e ratos.
Empilhando-as sobre o robusto braço, a dona de casa carregou-as até o pomar, onde, gentilmente, frutas de qualidades diversas se achegaram às fofas almofadas estampando aromas e sabores à nova ornamentação.
Findada a faxina, a dona de casa, de pé na sala, admirou aquele que era agora seu novo lar. Enxugou uma furtiva lágrima de satisfação com a ponta do avental, que teimou em novamente despontar, antes que ela, encabulada, conseguisse fugir para a cozinha e preparasse o almoço para o marido e as quatro filhinhas que estavam para chegar.
Lilian Amaral
muro.
além do
marchava
saúvas
correição de
Uma
Ao lado, meu primo e eu escalavrávamos a trinca dos tijolos vermelhos com uma lixa de unha. Éramos miúdos, mas espiar Clara deslizar na água, pra lá e pra cá, nos perturbava. Fascinados pelo reflexo de seu corpo sinuoso na superfície da piscina, só percebemos as saúvas quando, dentro das calças, já ultrapassavam nossos joelhos. Ainda hoje, quando arrio a ceroula para passar o sabonete, sinto nas palmas das mãos as marcas estampadas pelas ruivinhas.
Lilian Amaral
Igreja, padre, buquê. Um quarteto de violinos. O branco do meu vestido esvoaça na escada. O vermelho das madrinhas a ladear. João Pedro, também de branco, assopra um sorriso colgate para mim. Flashes, flashes.
— Eu juro.
Aruba, sol e muito mel. Pinã colada. Carlos Santana entoando Samba Pa Ti na piscina do resort. Eu e JP entrelaçados. Muita pele, o mar, eu e ele.
— A senhora deseja alguma coisa da copa? Vamos encerrar o serviço para a aterrissagem — pergunta o comissário de bordo.
— Obrigada, estamos bem! — agradeço e seguro a mão de JP, não gosto das aterrissagens. Queria conseguir dormir.
Prédios, marginais, avenidas. Cinza. Um verde aqui, um viaduto acolá. Caminhões, ônibus, um oceano de carros. O colorido dos outdoors ofuscando a massa humana que se desloca abaixo. De novo São Paulo, vida nova.
Dez minutos depois, o piloto pede para afivelar os cintos e anuncia o horário e as condições do tempo local. Ouço o ranger do trem de pouso se abrindo, sinto a trepidação. Aperto com mais força a mão de JP.
Com o repuxo da freada, o coração dispara e depois desacelera ao mesmo tempo que o avião para. Terra. Através da janelinha vejo chegando uma van com luzes piscantes, um homem barbudo com uma maca cruza a pista correndo, até se aproximar da escadinha da nossa nave.
— Senhora, por favor. Solte a mão do seu marido para podermos retirar o corpo.
Lilian Amaral
O jovem Valtério Bezerra, — um dia— foi um bom filho, um bom vizinho, um bom cidadão.
A primeira porta apareceu em sua vida quando ainda estava na barriga da mãe. Desidério Bezerra, o pai, desapareceu no mundo após surrar a mulher até ela quase sofrer um aborto. Quando Valtério atingiu a idade para entender a rejeição do pai, trancou a porta e guardou a chave debaixo do travesseiro.
Já na escola, as letras se embaralhavam em sua cabeça sem formar palavra, sem formar ideia. Constrangido, fechou a segunda porta, guardou a chave na cintura do calção e foi trabalhar com o vizinho que era dono de uma oficina mecânica.
Se apaixonou pela quarta filha do vizinho, que o escorraçou da oficina assim que percebeu o enrabichar dos jovens. Ferido, trancou a terceira porta e guardou a chave no bolso da camisa, próximo ao coração.
Um mês depois, ele e o primo foram presos por roubo de carro. Amarrados na caçamba da picape da polícia, foram expostos em praça pública como exemplos de maus elementos. Humilhado, trancou mais uma porta e guardou a chave na sola do sapato.
Na cadeia, foi traído pelo primo, que o vendeu como quenga para os outros presos. Desonrado, trancou a porta e guardou a chave embaixo do urinol.
Durante o julgamento, tanto o vizinho como a filha testemunharam tê-lo visto, na noite do delito, esconder o carro roubado na mata atrás de sua casa. Condenado por latrocínio, colérico, trancou a porta e engoliu a chave.
Quinze anos depois, após ser liberado do presídio, em uma madrugada, invadiu a casa do vizinho e meteu uma bala na cabeça de cada membro da família, reservando uma para o coração daquela que fora sua amada.
Concluído o serviço, trancou a porta e seguiu caminho. Ao cruzar com o diabo, fez um meneio com a cabeça e lhe entregou as sete chaves.
Lilian Amaral
Lançando pedras ao telhado do mosteiro, o patusco monge esbravejava imprecações jamais pronunciadas por uma boca santa. No alto, empoleirados na cumeeira, uma família de saguis assistia ao espetáculo enquanto devorava biscoitos de gengibre recém assados.
Indignado com a audácia dos malandrins, o monge — velhaco — decidiu castigá-los com uma armadilha. Depois de assar uma nova fornada de biscoitos, começou por dispô-los em uma trilha que seguia da cozinha até o precipício que sitiava a ala oeste do mosteiro.
Perfeccionista como era, o pândego monge seguiu o percurso, de costas e ajoelhado, alinhando com precisão a carreira de biscoitos, enquanto cantarolava um hino de glória. Empolgado com a emboscada e com a cantoria, não percebeu o fim da encosta e deslizou precipício abaixo enquanto vocalizava um Dó maior que se perdeu no abismo.
Empanturrados, os saguis se macaquearam na beira do despenhadeiro se acarinhando e catando piolhos enquanto entoavam em macaquês um hino triste de despedida ao homem santo.
Lilian Amaral
Ela não havia derrubado uma lágrima ao assinar os papéis do divórcio. Sua passividade diante da decisão de meu pai tinha me deixado perturbada. Nada, nada, foram trinta anos de casamento. Minha mãe dedicou quase metade dos anos de vida àquele homem.
Eu ainda remoía esses pensamentos quando retornamos à nossa casa. Foi então que vi minha mãe enfiar o dedo no nariz e dali retirar um velhinho. Era um velhinho do tamanho de uma caca de nariz, ressecado como aqueles mucos de catarro murcho que se formam em dias de clima árido e poeirento como os de inverno.
Minha mãe pegou aquela caquinha de velho e a colocou dentro de uma pequena xícara de vidro fumê, cobrindo-a com leite e deixando-a ali para hidratar. Dois dias depois, o velhinho já havia ganho outro aspecto, estava com a pele mais macia e acetinada.
Passados cinco dias, mamãe trocou a xícara por um copo alto, daqueles tipo embalagem de requeijão, e adicionou mais leite até ele ficar todo imerso.
Com o passar das semanas, ele ganhou mais volume e viço. Além da pele lisa e rosada, uma leve penugem castanha começou a despontar no alto da sua cabeça.
Quando minha mãe o transferiu para uma jarra de vidro, a penugem castanha já tinha se transformado em uma profusão de cachos sedosos. E nada mais nele nos fazia lembrar da caquinha de velho de dois meses atrás.
Para comemorarmos seus três meses, os cinco quilos ganhos e o aparecimento dos primeiros dentes, mamãe comprou uma grande tina de vidro repleta de leite fresquinho.
A compra dessa tina não foi nada fácil, minha mãe gastou muitas horas e créditos de celular para convencer um produtor de queijo caseiro a vendê-la. Depois tive que dirigir por seis horas para buscá-la. Fiz um bate-e-volta com a picape emprestada de um amigo até uma fazenda no interior do estado. Foi cansativo, mas valeu a pena, a tina que o produtor usava para fermentar cinquenta litros de leite serviu para hidratar nosso menino nos três meses seguintes.
Oito meses depois, ele havia se tornado um belo adolescente, ganhou musculatura, e a sombra de um bigodinho começou a mostrar-se sobre os lábios superiores.
Foi daí que tivemos que pedir ao vidraceiro que montasse um aquário enorme no quintal, do tamanho daquelas piscinas infláveis, para que ele pudesse continuar submerso no leite.
A essa altura, minha mãe já havia gasto todo o dinheiro da divisão de bens do divórcio na compra de leite e na construção daquele gigantesco aquário.
Com nove meses, mamãe apalpou o peitoral musculoso e achou que ele estava no ponto, já era um homem. Então esvaziou o aquário retirando todo o leite com uma bomba de sucção.
Banhou o moço com sais perfumados, penteou-lhe os cabelos, aparou a barba e o vestiu com roupas novas. Depois de escovar seus dentes com creme dental de hortelã, curvou-se sobre ele e sugou o nariz do rapaz com a boca, aspirando com força.
Com as narinas desobstruídas, ele encheu os pulmões de ar e ganhou vida. Então fui eu a ficar sem respirar, enquanto observava ele olhar sem expressão para minha mãe.
Depois de um longo tempo, ele a puxou para seus braços e a beijou.