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No imensurável "Inventário Universal", eles são catalogados como: espécie lendária.

 

Com sorrisos zombeteiros, olhos arteiros, pele crioula chocolate e carapinhas arruivadas no alto do cocuruto, corriam nus pelas florestas do sul do continente, muito antes, mas muito mesmo, de os europeus invadirem a América. Os primeiros registros, marcados em pintura cerâmica nativa pelos índios tupis-guaranis, datam do final do século X, quando centenas deles habitavam os Pampas. Batizados de Sa’cis, receberam o mesmo nome da ave de penas negras e topete carmim, bastante comum naquelas paragens.

 

Amigos dos animais, os piás também se afeiçoaram aos indígenas, de tal modo que, em 1550, para protegê-los dos invasores brancos, fizeram uso da habilidade de se tornarem invisíveis, plantando pistas falsas pela mata para engambelar o inimigo. Por essas proezas, foram ferozmente caçados e quase dizimados pelos homens brancos.

 

Alguns dos sobreviventes tiveram a sorte de encontrar, no final do século XVI, o povo negro, que havia sido sequestrado da mãe África e trazido como escravo para o Brasil. Os guris foram acolhidos e protegidos pelos africanos. Aqueles que haviam perdido uma das pernas na fuga da morte receberam a bênção da divindade espiritual Exu nas pernas sem par, para que estas se tornassem tão lépidas quanto as lebres que relampejavam pelas capoeiras. Também ganharam do Preto-velho cachimbos de fumo para espantar as moscas dos ferimentos.

 

Em meados do século XX, os Sacis, que se aventuraram mais para o sudeste do país, toparam com os imigrantes das regiões de Belém, Jerusalém, Taybeh e Ramallah que, foragidos dos conflitos entre árabes e judeus, chegavam ao país em busca de paz. Entre eles estava o casal José e Maria, acompanhados do menino Jesus. Da abençoada família, os garotos ganharam calçõezinhos vermelhos, que não mais serviam ao filho do Criador.

 

Uns poucos Sacis, que seguiram mais adiante até o norte do Brasil, encontraram, perdido na floresta tropical da Amazônia, um ancião albino, com uma barba muito longa. O pobre velhinho, que trajava uma grossa roupa de veludo vermelho, estava desidratado, assolado pelas queimaduras do sol inclemente e com muitas bolhas de picadas por toda a cara. A parelha de animais que conduzia seu trenó, as renas, havia-o abandonado e se embrenhado na mata fechada. Os curumins ajudaram o Papai Noel a resgatar as renas e a reencontrar o caminho para o Polo Norte. Em troca da generosa ajuda, o ancião os presenteou com toucas vermelhas. Toucas mágicas, das quais brotavam presentes que eles distribuíam aos pequenos manauaras ribeirinhos.

 

Atualmente, escassos são os registros de pessoas que avistam os Sacis. Embora minha família e eu façamos parte de uma grande comunidade no quilombo Pererê.

© Copyright 24/12/2024
E Natal e Tudo bem.png

Lilian Amaral

Tudo estava pronto. Sala limpa e arrumada. O galho de pinheiro fincado na areia de uma lata encapada com papel espelho dourado, dava o tom festivo ao ambiente. Meia dúzia de bolinhas coloridas e estrelas reluzentes, com apenas quatro pontas, adornavam os ramos. Para finalizar, até um pisca-pisca foi possível comprar na loja Xing Ling.

Um Papai Noel com apenas uma das pernas descansava sob a árvore. Ao seu lado, uma caixa de presente, preciosamente embrulhada com laços e adesivos dos super-heróis, guardava o Super-Homem com uma longa capa vermelha acetinada. O boneco também só tinha uma perna, mas, ele diria ao garoto que tudo bem, ele ainda podia voar.

Tudo perfeito para o dia seguinte. Seria Natal. E tudo bem. Seu filho só passaria pela cirurgia na próxima semana. E tudo bem. Seu pequeno, com apenas 3 anos, começaria o novo ano sem uma das pernas. E tudo bem. Ele já se antecipara e raspara seu próprio cabelo para mostrar ao filho que tudo bem perder os cabelos. Gostaria de poder cortar a própria perna, para mostrar ao garoto que, tudo bem também, nada, nada nessa vida  impediria seu filho de voar.

© Copyright 22/12/2024
ERA NATAL.png

Lilian Amaral

 

 

Era Natal, mais um dia.

Era Natal e, no jardim, flores se abriam e morriam como os outros dias.

Era Natal e os pássaros festejavam como sempre faziam.

Era Natal e a brisa era suave como nos bons-dias.

Era Natal e ele estava sozinho como sempre acontecia.

Era Natal, mais um dia, como todos os dias.

Era Natal e ele desejou que fosse diferente, não só, naquele dia.

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NOSSA CIDADE.png
© Copyright 01/12/2024
Ranzinza.png

Lilian Amaral

 

Ele se achava uma pessoa horrível. No mundo, ninguém valia. A máscara do sarcasmo era a que ele mais vestia, até o dia em que percebeu ser ele o seu maior carrasco e, também, quem mais sofria.

© Copyright 24/11/2024
SOBREPESO.png

Lilian Amaral

 

 

 

Era costumeiro, no dia anterior ao casamento de uma de suas netas, nossa avó nos chamar em seu quarto para um tête-à-tête a portas fechadas.  Não nos falava sobre a noite de núpcias ou dos deveres de uma boa esposa — somente preconizava o sobrepeso.  Recomendava, para após o casório, a vestimenta de roupas descombinadas e desatualizadas; o banimento das maquiagens e das escovas e penteados sofisticados; a erradicação das unhas pintadas e alongadas, o aniquilamento dos perfumes; a reprodução precoce e sistemática, sem contraceptivos; e, se muito necessário ao sustento do lar, um trabalho subalterno, servil, com um ganho inferior ao do esposo. Enfim, recomendava o ganho de peso corporal desmedido. Com seus conselhos, ela almejava poupar as netas de serem acusadas de “fazerem-se meretrizes, devoradoras de homens, Eva ou Lilith”. Dona Jesuína, minha avó, era uma sobrevivente.

© Copyright 17/11/2024
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Ele era um genuíno lambe-botas. Servil, adulava o prefeito, os vereadores, os secretários e até o gerente do zoológico. Com seus sessenta centímetros de língua musculosa, lustrava com suavidade e lisura os calçados das autoridades até o couro ganhar fulgor. Para os curiosos visitantes, ele demonstrava sua indiferença, exibindo o peludo traseiro e o majestoso rabo. Para seus cuidadores, ora simulava um afetuoso abraço, ora disfarçava um ataque com suas longas garras, fingindo um ferimento acidental, resultado de um gesto involuntário.  E, para as pobres formigas e cupins, ele revelava a língua pegajosa, coberta por minúsculos espinhos, com a qual, em uma única "lambida", aprisionava centenas de insetos, carregando-os goela abaixo. O equivocado animal, que, nascido em cativeiro, acreditava que seu cubículo gradeado fosse sua única opção de lar, empenhava-se em lamber botas a fim de manter “as graças” da submissão.

© Copyright 10/11/2024
EXÓTICO.png

Lilian Amaral

 

 

eram os olhos dele. Ora estáticos, como os de peixe morto. Ora sonolentos, como os de gato. Ora desconfiados, como os da raposa. Ora sedutores, como os das serpentes. Ora sem substância, como ele mesmo.

© Copyright 07/11/2024
RECEITA PARA UMA FAMÍLIA1.png
RECEITA PARA UMA FAMÍLIA2.png

Lilian Amaral

 

 

 

Dois fios de cabelo da sogra, dois fios da cunhada e dois da concunhada. Dois pentelhos do sogro, dois do cunhado, dois do concunhado e dois do maridão. Com os fios longos tecerei uma trama fraternal, com os curtos uma trama carnal. Com a primeira trama, farei um casulo pro meu coração. Com a segunda, uma toca para as serpentes que cuspirei assim que frutificar a macieira do nosso jardim.

© Copyright 26/10/2024
Envelhecer.png

Lilian Amaral

 

 

Puxei a cadeira e ajudei-a a sentar-se. Acomodei-me ao seu lado. Sob o resguardo de sua mesa, o médico olhou para mim e perguntou o que estava acontecendo. Relatei os seus incômodos, alternando meu olhar entre ela e o doutor, buscando sempre uma concordância calada dela. Ele deixou sua guarida, pediu que eu a conduzisse até a maca e sem olhar em seu rosto, sem trocar uma única palavra com ela, examinou-a rapidamente. Retornou a sua mesa e de cabeça baixa, rabiscando em seu bloco, ele decretou o diagnóstico. E mais uma vez, dirigindo-se apenas a mim, estendeu a receita dos medicamentos e nos despediu. Enquanto fechava a porta do consultório, ouvi-o murmurar um “estimo que ela melhore”.  Foi então que percebi a enormidade da dor de minha mãe, oriunda de seu apagamento.

© Copyright 20/10/2024

olho  além  dos  olhos

Lilian Amaral

 

 

vejo um passado nascente e um destino poente;

vejo a mata arder em chamas,

 os ipês se dissolverem em cores,

 o rio sedento d’águas, 

 o mar engolir cidades,

as cigarras não mais cantantes,

os mosquitos infestarem os lares;

vejo você, que só vê a si mesmo, vendar os olhos.

© Copyright 13/10/2024
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Lilian Amaral

 

ávida por poder,

— devorava-se —

como os políticos ambiciosos

em tempos de eleição.

© Copyright 10/10/2024

Um [pretencioso] manual

 

 

Lilian Amaral

 

Eu queria escrever um passo a passo pra você, mas desconheço as medidas de seus pés.

 

Seria um guia pra quem amou, alimentou, protegeu com redoma de vidro. Pra você que dedicou atenção e cuidados, sempre mais exigentes, nunca suficientes. Primeiro, você visitaria seis planetas. Conheceria o rei, o vaidoso, o bêbado, o homem de negócios, o acendedor de lampiões e o geógrafo. Não importaria se a temperatura ultrapassasse os 200 graus, se o ar fosse irrespirável ou se seus sapatos ficassem sujos de lama. Em meu manual, você riria com o príncipe e a rosa. Depois, você acolheria os pardais que se aninham no beiral do seu telhado, a azedinha que teima em crescer entre as roseiras do seu jardim e o cão da vizinha que insiste em avançar, todas as manhãs, na sua Belinha. Finalmente, com a raposa, você se deitaria sob o céu estelar e assistiria os cometas cruzarem a escuridão como se brincassem, em um pega-pega festivo, bobo, despretensioso.

 

Sem dúvida, eu escreveria esse passo a passo pra você, se conhecesse a grandeza de seus pés.

*Uma homenagem à Antoine de Saint-Exupéry. 

UM PRETENCIOSO MANUAL.png
© Copyright 28/09/2024
MEUS CRIMES.png

Lilian Amaral

 

 

 

Não sei se foi há dez anos, dez meses ou dez minutos. Estávamos encenando o Fantasma da Ópera. Ela era Christine, e eu, Erik, o Fantasma. Ela me corneou com Raoul. Eu a asfixiei com a máscara  do meu figurino. No bolso de Raoul, coloquei minha popular moeda da sorte, o anel de rubi de Christine e um lenço com nosso sangue. Raoul apodreceu na prisão. Agora, de mãos dadas, eu descanso em paz com minha amada no fosso do teatro interditado. O doce perfume de Cristine se converteu em um odor morno de brutalidade que marca o frio seco dos nossos corpos — mortos.

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ANDORINHAS.png

Lilian Amaral

 

 

 

As andorinhas atrasaram sua chegada. Adiarei meu olhar que acompanha a chegada das aves. Não verei as andorinhas que ondularam em voo. Céu seco de nuvens. Céu envolto em cinzas. Quando as aves chegam, trarão consigo flores e brotos. As andorinhas não chegaram. A chuva não chegará. Nem a primavera comparece

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ATÉ A ETERNIDADE.png

Lilian Amaral

 

 

Ela era uma viúva de araque, assim como havia sido uma esposa de araque. Ele sempre soube, assim como testemunhava no momento, quando a espiava na penumbra daquele banheiro de boteco. Com seus grandes olhos escuros, ele via tudo. Via como ela, em mais uma noite, depois de sete doses da branquinha, saciava as saudades da carne com um vagabundo qualquer. Entretanto, tudo que ela via e desejava ver eram os redondos olhos dele observando-a do teto turvo. Sem desviar seu olhar dos dele, ela murmurava uma espécie de rosário; entre dez “Ai! Vai! Isso! Agora!”, pedia-lhe perdão e declarava seu eterno amor, até a noite em que ele deixou cair uma gorda lágrima, justo no momento que, em êxtase, ela gritava o nome dele. Necessitada de confrontar a decepção do amado, ela rastejou debaixo do desconhecido corpo suado, levantou-se e acendeu a luz do banheiro. Os olhos dele haviam desaparecido, restando apenas duas grandes manchas de bolor no teto de onde gotejava umidade. Desiludida, ela jurou nunca mais voltar para aquela pocilga. Porém, como suas palavras também eram de araque, retornou na semana seguinte. Dessa vez, fodeu com a luz do banheiro acesa, enquanto o finado marido, cujo retrato ela havia pregado sobre as manchas de bolor, a espiava.     

© Copyright 11/09/2024
ESCREVENDO FICÇÃO.png

Lilian Amaral

 

 

São como duas paredes: o consciente e o subconsciente,

nas quais eu

— apaixonadamente —

escavo, com minhas unhas, uma brecha.

© Copyright 01/09/2024
O PRESENTE.png

Lilian Amaral

 

 

Era um estojo metálico quadrado, coisa de trinta centímetros. Em alumínio estriado fosco, com oito cantoneiras, duas fivelas, duas dobradiças e uma pequena alça em bronze reluzente. No centro da face superior, o emblema do fabricante em destaque, com arabescos figurando um brasão delineado em baixo relevo.  Abria-se como um mostruário de joias finas, com o interior forrado em veludo preto sigiloso. Dispostos lado a lado, doze anéis niquelados agrilhoavam os pares, companheiros, garfos e facas de mesa. Afáveis talheres em aço inox que cintilavam virgindade. Estranhamente, em um canto, desgarrada, uma faca com cabo robusto em mogno. Segura empunhadura. Lâmina lisa, curta e aguda. Quase um punhal. Preciosamente afiada, resoluta.

© Copyright 25/08/2024
Macarrão com frango.png

Lilian Amaral

 

Iguaria tradicional nos almoços de domingo em nossa casa, também é corriqueiro nas casas de nossos vizinhos, conhecidos e até desconhecidos. Carl Jung, ao analisar padrões na dinâmica familiar que se repetem através de gerações, talvez tenha incluído o famoso macarrão com frango domingueiro em seus estudos para a obra “Psicologia da família”.

Nesse domingo, ao sentar-me à mesa com meus irmãos após ouvir um “O almoço está pronto!”, me espantei ao não encontrar o macarrão ao sugo e o frango assado da minha mãe. Acredito que ficou evidente, pelo nosso silêncio, a perplexidade dos sete filhos.

Só percebi nosso ato falho quando vi meu pai aproximando-se da mesa, vindo da cozinha, com uma grande bandeja de peixes fritos, sua única especialidade. Foi então que me lembrei de que mamãe, que já estava sentada ao lado da cabeceira, era aniversariante. Nós tínhamos esquecido.

Foi triste, mas normal. Ela não disse nada. Ele também não. Sempre foi assim. Sempre achei estranho não almoçarmos o seu costumeiro macarrão com frango nos aniversários dela.

© Copyright 18/08/2024

5º Texto da Série:  Metáforas possíveis para o processo criativo do escritor de ficção. 

 

Magia.png

Lilian Amaral

Diante da folha em branco, a menina, ainda muito nova naquela arte, recorreu à cartola.

 

Olhou dentro e não viu nada. Enfiou a mão, apalpou e nada achou. Virou-a de cabeça para baixo, sacudiu e nada.

Com os olhos vasculhou as profundezas do oco. Não havia nada dentro, só um vazio, um desalento.

 

Persistente, afundou os dedinhos inexperientes no cavo. Mexeu. Remexeu. Mexeu. Resvalou no devaneio. Puxou!

 

Puxou das trevas uma pomba adormecida, um cordão de lenços rotos e duas orelhas compridas. 


Cara a cara com o coelho que despertava, não teve tempo nem de piscar antes que ele a devorasse em uma só dentada.



Agora, o destemido coelho, se apossando da caneta e da folha em branco, como que possuído, registra frenético a fantasia da pequena menina.
 

A mariposa estampada na vidraça testemunhou a magia.

© Copyright 11/08/2024

4º Texto da Série:  Metáforas possíveis para o processo criativo do escritor de ficção. 

 

Lilian Amaral

Desta vez ela não escapou!


A Eikasia foi, finalmente, apunhalada pela inevitável unha funesta. Unha que agora ostenta o triplo de seu comprimento (descuidada pelo escritor desvairado). Cravado entre a lâmina e o leito ungueal da unha, o artrópode — (des)tecedor das ideias — foi tragado pela crosta sebosa dos dejetos ali velados.


O homem, então, primeiro perdeu
a imaginação
e depois
a cabeça.

© Copyright 04/08/2024

3º Texto da Série:   Metáforas possíveis para o processo criativo do escritor de ficção. 

O Escrevinhador.png

Lilian Amaral

 

 

Após cinquenta e uma noites caladas,

estéreis,

a unha pontiaguda de um indicador funesto

que coçava furiosamente uma orelha dorminhoca,

deixou passar um

eikasia.

 

O artrópode,

feito chispa vertiginosa,

rastejou,

meio aos trambolhões de seus múltiplos membros,

pelo íntimo do ouvido de um escrevinhador,

até entranhar-se em sua psiquê.

 

Às avessas,

desteceu os casulos de fios sedosos que haviam mumificado vivências,

imagens,

cheiros,

sabores,

tatos,

referências históricas, literárias, culturais e científicas do sujeito.

 

Selecionou,

relacionou,

organizou,

interpretou

e iluminou-se

feito Siriús na escuridão do firmamento.

 

Despertou o homem que,

resplandecente,

abandonou o travesseiro suado

e se pôs a trabalhar sem parar

por cinquenta e um dias.

 

Até hoje

o escritor pergunta-se

de onde aquelas palavras surgiram,

se foram as musas,

as almas

ou

magia

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2º Texto da Série:   Metáforas possíveis para o processo criativo do escritor de ficção. 

EIKASIA.png

Lilian Amaral

 

 

Tão etérea quanto uma nebulosa (quase um espectro) penetra ouvidos ensonados violando a psiquê. Habita as gretas de travesseiros aventados que amparam cacholas desejosas e irrequietas. Com o centro esférico espalmado, incolor, inodoro e insipido, ostenta cinquenta e um milhões de ínfimas perninhas que, por vezes, descoordenadas, caóticas e tumultuosas, rastejam a uma velocidade superior à da luz, ultrapassando os pelos higienizados de um pavilhão auricular atento, seu canal auditivo externo, médio e interno até a alcançar sua presa. Alimenta-se de epistemes diversas. Provável Arthropoda registrada por Platão em 438 a.C.

© Copyright 20/07/2024

1º Texto da Série:   Metáforas possíveis para o processo criativo do escritor de ficção. 

A Ogra.png

Lilian Amaral

 

 

Começou por se autodecapitar.

Depois:

debulhou os olhos,

decepou o nariz,

amputou os lábios.

A orelha, que estava cheia de prudências, descartou na lixeira.

 

Xô, covardia!

 

Conferiu no livro de receitas os ingredientes faltantes para a eikasia:

1 hipotálamo arejado

+

1 hipocampo volátil

+

1 amígdala destemida.

Escarafunchou o crânio, juntando o sistema límbico à massa pré-fermentada do lobo frontal, temporal e occipital. Modelou-os no formato de pequenas sardinhas. Levou-os ao forno por 20 minutos à 180°C.

 

Resfriado os biscoitos, despertou o bichano que dormitava dentro do seu peito, acarinhou o pelo azeviche acetinado, roçou com delicadeza os longos bigodes, alimentou-o com os petiscos marinhos e deixou que ele ganhasse o fluxo:

deslizando na rabeira,

pegando uma marola,

fazendo um cutback,

saindo num aéreo,

ascendendo

à eikasia.

* O termo eikasia significa imaginação em grego.​

© Copyright 14/07/2024
O MAQUINISTA.png

Primeiro, ouvia-se o toc-toc do punho na veneziana de madeira. Depois, a voz rouca do Chamador convocando o Maquinista Socorrista para o descarrilamento de um trem na serra.

Do meu quarto, eu escutava meu pai insistir para que mamãe permanecesse na cama – ainda era madrugada. Ele mesmo prepararia a marmita.

No momento que ele se fechava no banheiro, ela arrastava seus chinelos até a cozinha, onde portas de armários e geladeira se movimentavam. Logo, um rastro de café recém-coado se esgueirava pela fresta de meu quarto.

Quando o banheiro se abria, o ranger das botas de borracha também seguia para a cozinha. Havia um tilintar da xícara de louça no pires, um sssrrrp do zíper da mochila fechando-se, e um “Volte a dormir” era cochichado antes que eu ouvisse o clic da chave e o entrefechar da porta da rua.

Um instante depois, o arrastar dos chinelos dela se estendia até o oratório da sala. O fssst de um fósforo sendo aceso e o murmurar de preces logo eram abafados pelos ruídos do motor de uma locomotiva ao longe, acompanhado pela sirene estridente da Estação Ferroviária que prenunciava sua partida. 

© Copyright 08/07/2024
VERDEJANTE.png

Lilian Amaral

Enterrou-o, com as quatro patas traseiras, esguias e longas, ainda em posição de apoio. As patas dianteiras, também, erguidas e dobradas em ângulo de 90 graus, sempre em oração, mesmo depois de ter partido.

Na cozinha, mais uma vez, ela areia as panelas e observa, pela janela, o pé de manjericão no quintal. Com os olhos empapuçados, mas não mais aquosos, a garota sente, suspensa na garganta, uma golfada áspera. Lembra-se da primeira vez que o viu: entre as folhas do manjericão, ele, quase, quase, desaparecia. Seria um camaleão? Não, não. A postura o denunciava.

Tão finas pernas, tão estreito corpo, apenas uma estrutura, um esboço de ser. Equilibrando-se, com cada ínfima pata em uma das suaves folhas da erva, ele desafiava a gravidade e o vento. Apenas duas pintas marrons com o centro mais escuro em suas asas, feito olhos a fitar o mundo, se destacavam em meio a tanto verde.

 

Foi assim que a garota, muito menina, descobriu o louva-a-deus, enquanto lavava a louça dos familiares da patroa e buscava na paisagem do quintal algo que fizesse seu dia belo e suportável.

O quintal da residência era gigantesco, com piscinas e magníficos jardins com plantas cujos nomes ela sonhava conhecer. Era daquela janela, enquanto cumpria seu ganha prato, que ela diariamente contemplava aquele éden, e sua vida ganhava cor. O encanto das flores, dos pássaros, borboletas, abelhas e insetos que floresciam lá era muito diferente do morro que habitava.

Logo, a menina e o louva-a-deus se tornaram melhores amigos. Todos os dias, ao terminar de lavar a pia, varrer e passar pano no chão, ela ganhava seu prato com as sobras da família e corria para sentar-se no gramado, o lado do pé de manjericão. Enquanto devorava aquela que poderia ser sua única refeição do dia, ela admirava a perfeição, graciosidade e elegância de seu novo amigo.

 

Logo, também, tornaram-se confidentes. Muito quieto, ele a observava com sua cabeça triangular, grandes olhos e antenas atentas, enquanto ela lhe relatava as penúrias e crueldades de seu cotidiano.

A garota o achava tão frágil e vulnerável a ponto de temer por sua segurança. Sofria com pesadelos, em que os gatos do patrão o caçavam e o devoravam. Porém, nenhum dos males dolorosamente sonhados se sucedeu.

A tragédia que transcorreu superou suas piores aflições, e, mais uma vez, a menininha teve sua inocência arrebatada pela traiçoeira boa aparência.

No dia fatídico, ela enxaguava a espuma de uma jarra quando viu aproximar-se, voando, um pequeno beija-flor verde-azulado. A deslumbrante ave, espetáculo iridescente, pareceu, primeiro, executar um breve bailado diante de si, cumprimentando-a. Em seguida, rumou, veloz, para o jardim além da janela, indo alimentar-se das flores amarelas de um pequeno arbusto que ficava ao lado do pé de manjericão.

Um instante depois, ela assistiu, horrorizada, um lampejo verde, vindo do manjericão, lançar-se sobre o beija-flor e derrubá-lo no gramado. O predador se agarrou à cabeça do passarinho, cravando nele as duas patas dianteiras serrilhadas e, com suas pequenas mandíbulas afiadas, rapidamente se pôs a devorá-lo. A ave, ainda em alarido pipilar, se debatia em descontrole, tentando escapar.

A vassoura do jardineiro não foi suficientemente rápida para salvar a vida do desafortunado pássaro, mas foi eficaz em abater o amigo.

VERDEJANTE.png
© Copyright 30/06/2024
Cinema ex Paradiso.png

Sou a primeira a sentar-me na primeira fila do cinema para vislumbrar Malena. Logo, Morricone corre para beijar meus pés, e o menino Totó se aninha em meu colo.

 

Na tela, Romeu, suspenso no balcão, sequestra o primeiro beijo de Julieta. Um rio brota em meus olhos.

Rio caudaloso

e fugidio,

adornado

com peixes coloridos

e estrelas marinhas.

Enlaçados pela correnteza, colo meu corpo ao corpo de Aquaman; ele, por sua vez, cola sua boca na minha boca. Eclodimos em paixão.

Não percebo a aproximação do gigantesco Tubarão branco nem ouço o:

Tã    Tãã      Tããã

Tã    Tãã      Tããã

Tã    Tãã      Tããã

Atentos, dois pescadores caiçaras, munidos com suas ARs-15, fazem o serviço sujo.

Um carro de polícia chega na praia de Amity para prestar socorro. Tarde demais. Como na tela cinematográfica, os oficiais nem conseguem recuperar os corpos dos banhistas abocanhados.

Emergindo da água encarnada, o “Lanterninha”, com um gramofone, pede que todos deixem o cinema.

Sem conc(s)erto, nosso amor acaba com

“Era uma vez na América”.

Contudo, Morricone vive para todo(s) o sempre!

© Copyright 23/06/2024
Ameaça real.png

Lilian Amaral

 

 

 

Beirando os vinte metros de altura, com troncos lisos e retos, ligeiramente alargados na base, eram elas, as três majestosas palmeiras imperiais. Idênticas e robustas, ostentavam um grande leque de folhas verdejantes, longas e arqueadas, no topo.

Enfileiradas no centro do paço municipal, as árvores magnificavam a fachada da prefeitura e eram veneradas pelas autoridades vigentes, estampando o brasão e a bandeira da cidade, como símbolo de força e poder.

Plantadas há décadas pela família real fundadora do vilarejo, as árvores sempre foram o espelho, cujo reflexo os novos governantes acreditavam reproduzir seus soberanos atributos. 

A devoção era tamanha que, anualmente, em uma prestigiosa cerimônia acompanhada pela banda paroquial, um cidadão ilustre era convocado para ajudar a medir os monumentais colossos verdes.

Nos primeiros anos, as espessuras das hastes das recém brotadas palmeirinhas eram tomadas por um cordão de ouro real. Com o passar do tempo, os caules foram medidos com as pontas dos dedos do prestigiado cidadão.

Após décadas, as medidas passaram a ser aferidas com a contagem dos palmos do notável, até que, com a aproximação do primeiro centenário, as palmeiras passaram a ser metrificadas por braços, que, em um abraço, dimensionavam o diâmetro dos troncos.

As grandezas numéricas, que até então, cresciam muito lentamente, eram devidamente registradas nos anais da administração da cidade.

Assim foi até o dia em que a palmeira do meio começou a embarrigar. A dez metros do solo, o tronco começou a abaular-se. Com o passar de três meses, já era necessário o abraço de três cidadãos para abarcar toda a circunferência. Aos cinco meses, mais dois pares de braços foram requisitados para registrar o diâmetro. Com sete meses, a casca acinzentada lisa começou a apresentar estrias. Com nove meses, um filete líquido rosa escorreu do barrigão do tronco até o gramado.

Finalmente, em uma manhã gloriosa, em que o céu azul varonil engrandecia o horizonte da modesta localidade, logo após o nascer do sol, o barrigão se rompeu, e, dele, majestosamente, ascendeu a ancestral família real.

Diante de tal descalabro, temendo terem seus poderes usurpados, imediatamente, as autoridades municipais vigentes deram ordens para que fossem decepadas as reais cabeças— ressuscitadas.

© Copyright 16/06/2024
Quem sou eu.png

Lilian Amaral

 

Só uma vez não o deixo passar. Seguro-lhe a cauda e lhe cuspo nos beiços — trem não passageiro.

Deixo atrás de mim um rastro de veneno. Vestígios neon de graxa nos trilhos. Delicados e fosforescentes, descemos colinas.

Mais que mortal, feito Mata Hari, escondo-o no fundo da boca.

Subo as paredes antes que as luzes se apaguem. Farol que ilumina, mas que não vê obstáculo. Topar com um deles é abrir-se.

Café com pão! Café com pão! Café com pão! Recordo Bandeira. Bebo um copo, como um prato, vomito tudo feito lixo. Soa o apito.

Com os olhos vermelhos, vejo a morte. Enxergo de perto o fundo da garganta. Vejo tudo, dormentes em pilhas, rodas de ferro, corpo de aço.

Sem trilhos, não há trem.

Nada passa quando tudo se foi.

Trem que um dia partiu —estrangeiro.

© Copyright 08/06/2024
Bigodon.png

Lilian Amaral

 

 

 

 

Salvador nem notou quando perdeu seu bigode. Tendo despertado muito antes do sol, ele já despachara a primeira encomenda e agora finalizava a segunda. Era a terceira travessa de acarajé que preparava naquela manhã.

Estava volteando, com delicadeza, para lá e para cá, os bolinhos no dendê para que a crosta dourada ficasse uniforme, quando sua ajudante de cozinha chegou e, estranhando a cara limpa do patrão, arquejou um suspiro alto de surpresa. Só então ele descobriu a ausência do bigodon.

Assombrado com o desaparecimento do bigode, Salvador o procurou na gola do dólmã, nos bolsos do avental, em cima e embaixo da bancada de trabalho, vasculhou as bocas do fogão, meteu a cara dentro do forno, e nada. Não estava em lugar nenhum.

O majestoso bigode, castanho avermelhado, era a viril logomarca de sua salgaderia. Vigoroso e com um suave ondejar que finalizava afilado, o tufo de pelos reluzentes, logo abaixo do nariz, inclinava-se para o céu, como num sorriso a dar graças ao Criador pelo talento culinário de seu amo.

Oh, meu Deus! Onde foi parar meu bigodon?, lamentava-se Salvador, curvado sobre a pia. Debulhando-se em lágrimas que desabavam sobre uma tigela de camarões recém-pescados, nem reparou quando os crustáceos, banhados pela água salgada, ganhavam uma nova vida, deslizando da tigela e saltando janela afora até o braço de mar que se abeirava nos fundos da cozinha.

Enquanto repassava na memória os fatos daquela manhã, o desolado cozinheiro se recordou de ter se encontrado com a jovem donzela, dona de seus desejos, assim que abriu as portas da sua lojinha.

Há muito, perdidamente enamorado pela moça, ele havia ensaiado para aquele momento um galanteio, mas, como sempre acontecia, hesitou e se calou. Nunca tivera namorada, esposa ou amante. Tímido, vivia só.

Vestindo um sorriso acanhado, Salvador apenas conseguiu entregar os quitutes encomendados por ela, para a cerimônia no terreiro, sem pronunciar uma palavra. Em troca, recebeu de volta um sorriso matreiro da donzela de olhos enrabichados.

Teria o bigodon, dissimulado, escapulido junto com a encomenda de acarajés, atrás da rapariga? Quando a suspeita lhe brotou na cachola, um suor gelado lhe empapou a fronte. Abandonou a frigideira, na qual a nova leva de acarajés já passava do ponto, e atabalhoado, seguiu correndo.

No terreiro, furtivo, após ter-se esgueirado para dentro da caixa de papelão entre as fileiras de bolinhos, lá estava ele, o bigode fujão, sobre a mesa de café que a jovem donzela arrumava para a celebração que aconteceria naquela manhã.

Sorrateiro, o bigodon deslizou da caixa para a tolha branca, escorregou mesa abaixo e se meteu sob o vestido longo da moça. Escalou a barra da saia, ocultou-se sob as ondas do saiote, fluiu pelas pernas bem torneadas, infiltrando-se pela seda da pele úmida, varando, enfim, esplendoroso, o calor de seu centro.

Por um instante, talvez, por um tempo maior que um só instante, em sublime entrega prazerosa, a donzela entrefechou os olhos, enquanto o calor crescente do hálito invasor impregnava sua pele e devassava gulosamente sua secreta trincheira, até seu corpo todo pulsar e estremecer, atravessado pelo vigor.

Salvador ainda chegou a tempo de assistir, boquiaberto e perplexo, a jovem, desvanecida no chão do pátio, dar um longo e lento suspiro, enlanguescida, após descobrir o desabrochar doce do abismo.

© Copyright 02/06/2024

Lilian Amaral

 

 

Sobre mim. Sobre ti. Sobre minha vizinha, teu cachorro, um primo distante, um asiático além mar. Todas, todas à caça de um — eu, escritor.

Sentada no alto de um muro alto, muito alto, mas muito alto mesmo, empino a bunda e a escorrego até a beirinha.  Inclino o corpo e a cabeça, debruço-me e tento ler novamente o título “desse texto” que alguém grafitou no reboco do muro.

As palavras estão de cabeça para baixo ou sou eu que estou com as pernas para cima? Uma vertigem balança o muro, não, sou eu quem balanço sobre o muro, balanço sobre as letras.

Empunho a caneta e descabelo, praguejo, amaldiçoo, renuncio, fantasio, sorrio e passo a limpo. Traço letras floreadas, caixa alta, com serifa, negrito e sublinhadas; quero tudo e quero nada.

Aqueles que me observam, lá de baixo, não sabem se sou um pássaro, macaco ou suicida. À distância, feito codorninhas alvoroçadas, cada um fabula sua própria teoria. Não engano a maioria, e, diante da zombaria, vacila minha ousadia.

No melhor da festa, a questão persiste: sobre quem são tuas palavras?

Sei não. Qualquer especulação — será mera ilusão.

© Copyright 27/05/2024

Lilian Amaral

 

 

 

Desejou devorar o amigo. Guardou aquela paixão embaixo do travesseiro. O amigo era tímido e conservador. Contudo, ele sempre desconfiou que o outro abrigava no íntimo uma natureza carnal. Amou-o, sigilosamente, por dias, meses e anos, até se distanciarem. Quando, enfim, se reencontraram, o amigo havia despertado. Subjugado pela libido, começou a devorá-lo pelo tenro lóbulo da orelha direita, subiu pela bochecha, nariz, lábios... quando terminou, limpou a boca encarnada na manga da camiseta.  

 

 

 

 

Texto publicado na Revista Tinta Azul em Maio 2024

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© Copyright 19/05/2024
Naquele outono.png

Lilian Amaral

 

 

Trinta de março de 1962. O vento agudo revirava meus cabelos e sussurrava agouros. Com passos ligeiros, eu triturava as folhas ressequidas da calçada, e o ruído estaladiço ecoava nas paredes desconhecidas. Sobre a mensagem recebida, ninguém sabia. Que eu havia escapado da escola, ninguém desconfiava. Somente eu, somente eu sabia daquela insensatez. Da sombra da árvore, ele se revelou como um espectro. Os reflexos avermelhados do fim de tarde lhe conferiam um aspecto demoníaco. Em seu colo, um saco grande esfarrapado se deformava, se contorcia, serpenteava, e gemidos atormentados se desprendiam dele. Recuei dois passos quando o vi se agachar e abrir o saco. Um vulto escuro saltou de dentro e chispou em minha direção. Caí sentada no meio-fio, quase esmagada pelo corpanzil peludo. As lambidas gosmentas que recebi no rosto confirmaram que era o meu Thor. Enquanto eu permanecia sentada na sarjeta abraçada ao meu companheiro fujão, o garoto me explicou como o havia encontrado. Com gentileza, ele estendeu a mão para levantar-me, a mesma mão que, hoje, eu, desajeitadamente, tento anelar nossa aliança de bodas de ouro, enquanto nos afloramos em risos.

Texto publicado na Revista Tinta Azul nº1

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© Copyright 11/05/2024
Abril de.png

Não era outono; embora algumas árvores se camuflassem em tons quentes, terrosos, e outras se desnudassem sem pudor. A luz dos dias era ceifada pouco a pouco, e as horas acrescidas de noites. O obscuro nevoeiro matinal que deveria encobrir apenas os corpos d’água solapava toda a área urbana, apagando os contornos, reduzindo os seres e os edifícios a um mistério indistinto.  A sensação de frescor desaparecera, a umidade abafada era viscosa e deixava uma fina camada de resina na pele. Era como se a vida estivesse temporariamente suspensa, como se uma expiação estivesse prestes a acontecer. Essa sensação foi amplificada por um temor sobrenatural que isolou e calou as pessoas. Não era outono; a atmosfera não era acolhedora nem nostálgica. Era apenas o que restou.

Texto publicado na Revista Tinta Azul nº1

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© Copyright 05/05/2024
O HORTELÃO.png

Lilian Amaral

 

 

 

— Santíssima, mataram a professora Bel!

O grupo de garotas que conversava em frente à escola emudeceu ao assistir Rosana sair correndo da sala de aula, escorregar na calçada, quebrar um dos saltos de sua rasteirinha e desmaiar, perdendo os sentidos.

 

Logo, um caos de ações acometeu as jovens. Enquanto Ivone tentava ressuscitar Rosana com pó de pimenta rosa, Lúcia aparava a cabeça da companheira com uma almofada estampada com alegres duendes para que ela tivesse bons sonhos. Tânia, a mais mística, buscava explicações nas nuvens e no vento. Helena e Mauren se abraçavam e choravam ao mesmo tempo que combinavam um discurso festivo para o funeral da professora. Já Maria Izabel e Janete, as mais valentes das moçoilas, munidas de seus sabres, adentravam, pé ante pé, a sala de aula.

 

As oito amigas se esgueiraram entre as carteiras, observando a sala vazia. Sob a mesa da professora Bel estavam seus livros, o apagador e a caixa de giz. A cadeira estava tombada, e seu vestido de paetê preto emaranhado sobre ela. Marcas de pegadas ensanguentadas apareciam junto à cadeira caída e seguiam até a porta nos fundos.

 

Acotovelando-se no final da sala, as estimadas colegas disputaram, com empurrões, um lugar para espiar, através do pequeno requadro de vidro da porta, o que havia do lado de fora.

 

Entre os compridos canteiros de verduras e ervas daninhas da horta do colégio, viram Clayton. O temível hortelão trabalhava com vigor no solo, usando um grande chapéu de palha e seu macacão de cetim rosa-claro.

 

Clayton sempre foi um homem singular. Embora fosse surdo e mudo, fazia questão de participar do coral natalino da escola todos os anos. Seu olho de vidro e sua perna de pau davam a ele uma aparência singela e o favoreciam na execução das tarefas na horta. Sob o sol quente do início da tarde, o suado hortelão cobria uma vala retangular com grandes pás de terra.

 

Desconfiadas, as garotas repararam nas manchas vermelhas que salpicavam o macacão de Clayton e suas grandes botas de pelica branca. Sem se conter, Rosana começou a pular e gritar:  Foi ele, foi ele!

 

Surdo, Clayton ouviu o alvoroço vindo do prédio, levantou a cabeça e capturou, no reflexo de seu olho de vidro, as oito raparigas.

 

Presas dentro da esfera translúcida, as jovens começaram a gritar por socorro e a se lançar contra o vidro para tentar escapar. Janete e Maria Izabel, ainda quase valentes, ensaiaram sofisticados golpes marciais com seus sabres, a fim de romper o invólucro. A refração sonora do tumulto dentro da esfera foi tamanha que as superamigas acabaram por desfalecer com a intensidade das vibrações.

 

Assustadas, as meninas acordaram no ambulatório do colégio e se surpreenderam ao ver a professora Bel sã e salva, conversando em libras com Clayton.

 

A mestra, então, explicou que, ao chegar para a aula mais cedo naquele dia, recebeu a visita de Clayton, que lhe trouxe uma cesta de beterrabas que acabara de colher. Depois, como a manhã estava belamente ensolarada, ela vestiu seu maiô de oncinha e foi se bronzear no telhado da escola.

 

Envergonhadas por terem suspeitado de Clayton, as colegas pediram desculpas ao hortelão. Amuadas, retornaram para a classe e trabalharam toda a tarde em suas redações, criando histórias mirabolantes.

 

Enquanto isso, do lado de fora, agachado sobre sua perna de pau, o hortelão mascava um fio de grama. Com um brilho sinistro no olho de vidro, sondava a sala de aula.

© Copyright 29/04/2024
Assim é a vida....png

Lilian Amaral

 

enterrei o outono a sete palmos no jardim. a ausência acampou no inverno — dolorida. a primavera nasceu miúda e agitada. três meses depois, já estávamos passeando juntas na pracinha. ela era ligeira e esperta. sua pelagem e suas orelhas eram tão longas quanto tinham sido as de seu pai. era verão, e, neste ano, meu jardim parecia mais florido.

Texto publicado na Revista Tinta Azul nº1

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© Copyright 21/04/2024
LADRILHOS SUCÇORS.png

Preciosa maestrina do lar,

Hei! Você aí! Você mesma! Você, que é diariamente agraciada com a dádiva de reger com esmero o asseio de seu adocicado lar: do piso cintilante à pia livre de louças, às lixeiras esvaziadas, às toalhas secas e higienizadas, às roupas perfeitamente dobradas e acomodadas nas gavetas, etecetera, etecetera e tal.

É pensando em você, pensando em mimá-la e brindá-la com mais alguns segundos para si mesma, é que nós da Ladrilhos Sucçor’s investimos no desenvolvimento de produtos capazes de lhe conceder essa extraordinária regalia de tempo.

O Sucçor’s Fur, nosso mais recente lançamento em piso, foi elaborado sob medida para você, que se martiriza as com bolas de pelos com quais o Luluzinho, a joia de quatro patas que reina em seu lar, adorna toda a casa.

 

Bolas de pelos que flutuam pelo longo corredor, vulneráveis até mesmo às brisas mais sutis. Esses delicados sopros agrupam os pelos dispersos no piso, enovelando-os em esferas diáfanas que esvoaçam graciosamente, aderindo ora aos rodapés dos cômodos, ora à barra da calça do marido, ora à pantufa aveludada da vovó, ora, mesmo, à mãozinha bisbilhoteira de sua adorável bebê que gatinha sapeca sobre os ladrilhos peludos.

 

Sua filhinha, delicada e birrenta, que adora apanhar essas bolinhas de pelos flutuantes e levá-las à miúda boquinha para depois abrir um enorme sorriso banguela, exibindo a gengiva e a língua rosa decoradas com pelos do Luluzinho. Mascote esse que, por sua vez, abana o rabo e sacode o corpo disseminando mais pelos, alegre com a companheira bebê, agora, também peluda.

Com o Sucçor’s Fur, você não precisará mais se descabelar no combate às bolas de pelos com vassouras ou com as diferentes parafernálias tecnológicas “pega pelos”, encontradas no mercado.  Os ladrilhos Sucçor’s vieram ao seu socorro, armados de uma tecnologia autolimpante, com rejuntes porosos conectados a dutos de sucção.

Assim, sempre que o Luluzinho deixar cair um único pelinho, este será imediatamente sugado para o duto e conduzido até um compartimento central de armazenagem de sujeira, e seus ladrilhos se manterão sempre limpos. Pense nos alegres dias de visita da sogra, que pasmará com o extraordinário asseio de seu lar e poderá até emitir um elogio, murmurado pelo canto da boca.

Como benefício extra e o pagamento de uma pequena taxa adicional, podemos acoplar aos seus ladrilhos um equipamento que separará os pelos de outras poeiras. Com o conjunto de pelos selecionados e higienizados, você poderá tecer novas perucas para seu marido e sogro, que, satisfeitos com sua gentileza amorosa, cumprimentaram-na com batidinhas leves nas costas. Quando eles já estiverem com um bom estoque de perucas, você poderá anunciá-las para venda em suas redes sociais, contribuindo, assim, para o aumento da renda da família.

Quem sabe, então, seus agradáveis vizinhos cochichem, entredentes, como você é uma maestrina do lar preciosa.

© Copyright 07/04/2024
REPAGINANDO A HISTÓRIA.png

Lilian Amaral

Resplandecente no varonil celeste,

   Apolo, o Deus Sol,

assiste a meia dúzia de gatos pingados circularem por seu grande templo. No passado, em um dia tão venusto quanto o próprio deus, filas quilométricas de humanos ansiosos por escutarem as previsões futurísticas das atraentes pitonisas formavam-se no local.

Recorrendo ao Google, buscou uma solução para novamente atrair a visita dos humanos. Artur Ávila – conceituado matemático, premiado com a medalha Fields por sua teoria capaz de prever a evolução, em longo prazo, de fenômenos naturais e sociais – foi convocado para repaginar o templo e as ultrapassadas sacerdotisas da grande Píton.

 Ávila chegou à Grécia trazendo consigo um carregamento de iPads de última geração. Depois de acompanhar Apolo em uma longa caminhada pelas vielas de Delfos, conversar com o povo e entender suas demandas, seguiu para o templo.

 

Lá, durante uma semana, submeteu a equipe de pitonisas a um curso intensivo de MBA, desenvolvendo habilidades estatísticas para adivinhação dos números da Mega Sena e estratégias profissionais de coaching para ajudar as pessoas a encontrarem a felicidade. Além disso, também fez um upgrade no aforismo inscrito na entrada do santuário.

De: “Conhece-te a ti mesmo”

para: “Conecte-se e conheça a vida do outro”.

© Copyright 31/03/2024
A Santa Ceia.png

Lilian Amaral

 

 

Eu queria uma geladeira. Mas, minha madrinha nos presenteou com uma reprodução da Santa Ceia. A recomendação do padrinho, foi a de que colocássemos a tela na copa, sobre a mesa de jantar, como decoração para o ambiente. O que eles não sabiam era que o nosso apartamento não possuía esse cômodo, nem uma mesa para o lanche.

 

Recém-casados, nós não tínhamos recursos nem tempo para grandes refeições. O Emanuel continuava jantando no sofá, como já fazia na casa da mãe dele, e eu me virava no estreito balcão que separava a cozinha da sala.  O único espaço vago de parede que havia restado para fixarmos o quadro foi o lugar reservado para a geladeira, eletrodoméstico que, infelizmente, ainda constava na nossa lista de “presentes para os noivos”.

 

A pintura não era uma réplica da Última Ceia de Leonardo Da Vinci. O foco da composição não estava no Cristo e no seu olhar sereno. As expressões dos apóstolos não eram de surpresa, indignação, tristeza ou dúvida acerca de quem seria o traidor. A Santa Ceia, que agora enobrecia a minúscula cozinha, estampava um Jesus sorridente em clima festivo entre seus companheiros. O enfoque estava no banquete, na opulência da ceia, farta em frutas, carnes, peixes, pães e vinho, tudo o que não tínhamos.

 

Naquela noite, depois que cheguei da faculdade, tomei uma ducha, engoli um cachorro-quente, debrucei-me sobre o balcão da cozinha e lá fiquei, como que hipnotizada, admirando a enorme tela. Tamanha era a gula e deleite nos rostos dos personagens retratados que me fez pôr em dúvida se, seguramente, aquela teria sido a celebração em que Jesus anunciou que seria traído. Ficava fácil imaginar Judas Iscariotes se empanturrando de comida e vinho e postergando o momento de dedurar seu Mestre.

 

A comilança, estampada na minha frente, fez meu estômago sapatear. O lanche não tinha sido suficiente. Por infortúnio, uma passada de olhos na prateleira revelou apenas dois frascos de produtos de limpeza, uma lata de massa de tomate e outra de Toddy, tudo o que havia sobrado do final de semana da mudança.

 

Contemplei mais uma vez o quadro, senti o aroma e o sabor da carne assada. Quando dei a primeira mordida, a textura era macia e marmorizada. As especiarias usadas na sua preparação haviam deixado um resquício adocicado. Suculenta e levemente amanteigada, parecia ter sido defumada.

O cheiro atraente da broa recém-assada era acolhedor e irresistível.  A consistência densa e as migalhas firmes nada lembravam a bisnaga do hot-dog que eu acabara de jantar. Porém, seu sabor robusto e terroso, até mesmo um pouco amargo, era desagradável.

Estiquei o braço para pegar o cálice de Jesus e provar o vinho, mas João, que estava sentado à sua esquerda, deu um tapa em minha mão e me ofereceu a sua taça. O copo de metal era pesado, e o vinho possuía um gosto forte, mas descia suavemente. O aroma convidativo era frutado e prazeroso, como se eu estivesse em frente a uma bacia de uvas bem maduras. 

Simão Pedro, que estava à direita de Cristo, ofereceu-me o peixe assado, pescado por ele naquela manhã. A carne tinha um sabor delicado e cítrico. O cheiro era fresco e levemente salgado. A crosta externa ligeiramente crocante e a interna desfazendo-se na boca criavam uma combinação sublime.

Ouvi a chave girar na fechadura da porta do apartamento. Era o Emanuel retornando da fábrica.

 

Meu noivo chegou suado, mas risonho. Além da mochila, ele carregava uma sacola de padaria. Depois de me dar um beijo, começou a despejar sobre o balcão dois pedaços de pizza, duas coxinhas, dois refrigerantes e dois sonhos de doce de leite.

 

Orgulhoso da refeição que me oferecia, Emanuel anunciou: “Olhe só o banquete que eu trouxe para a nossa ceia!”.

© Copyright 24/03/2024
Gastropofagia.png

Uma orelha boiou na sopa. Um nariz escorreu do prato. Três dedos guardou no maço de cigarros. Um quarto dedo pousou na biqueira do cinzeiro, pronto para o trago. Com o quinto, palitou os dentes. Sempre foi "fissurado" pelas mãos do patrão. Antes de escapulir do restaurante, surrupiou a receita premiada do ex-dirigente — o finado chef de cozinha.

© Copyright 21/03/2024
no verão.png

Lilian Amaral

 

 

de olhos fechados,

corra na relva ao entardecer.

ouça as árvores balançarem as folhagens,

a brisa suave sacolejar as ramagens.

sinta a carícia que o vento espalha.

saborei o poente ao recolher o sol

e a noite solitária repousar em seu corpo.

abra os olhos.

testemunhe às estrelas brotarem no céu,

respire o luar.

e, vigie seus últimos pensamentos

cruzarem

llllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllllentos.

© Copyright 11/03/2024

Lilian Amaral

 

O som do trem. O som do trem bate no peito. Bate no peito e dói.

Nesta foto, seus cabelos estão longos, os cachos na altura dos cotovelos. As bochechas rechonchudas destoam dos lábios contraídos e baixos.  Os olhos, arregalados.  Seu vestido de veludo escuro com gola de renda só pode ter sido costurado pela mãe. O tio segura em uma  de suas mãozinhas; na outra, ela carrega um pequeno saco de papel, com certeza, doces para a viagem. A tia e os primos aparecem no segundo plano, já subindo a escadinha.  O pai deve ter sido o fotógrafo. Na imagem escura, somente a porta de entrada do trem, ela e seus parentes podem ser visualizados. Nas margens esquerda e direita, só escuridão. 

Já neste retrato seus cabelos estão curtos e lisos. Ela veste jeans e uma malha com listras coloridas. A mochila, no chão, está frente aos seus pés. Ladeada pelas amigas, elas estão abraçadas, dentes à mostra, olhos arregalados. O namorado, que havia lhe dado carona até a estação, deve ter sido o fotógrafo. A imagem colorida é mais nítida, dá para ver as pessoas subindo a escadinha e entrando no trem. Na janela, rostos enquadrados e mãos acenando. Mas nas margens, nas margens esquerda e direita, persiste a escuridão. 

A primeira vez que ela viajou de trem foi aos cinco anos de idade, quando, no escuro da noite, se despediu dos pais na estação para uma temporada de férias com os tios. A segunda vez foi aos dezessete, quando seguiu com as colegas, também no escuro da noite, para a capital prestar vestibular.

Tudo deu certo, tudo foi muito bom, mas não foi. O desconhecido, a angústia de estar sozinha, o escuro...

O medo anoitece as recordações.

Reminescência.png
© Copyright 03/03/2024
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Lilian Amaral

— Quanta sujeira! Como essa gente pode guardar tanto lixo? — ela resmungou, franzindo o cenho e repuxando os lábios, como se estivesse abocanhado uma fruta marrenta. — Não vou ficar aqui, sentada ao seu lado, assistindo a esses acumuladores exibirem sua maluquice.

 

Coçando a barba e sem desviar os olhos da tevê, ele rosnou quase sem abrir a boca: 

— Meu bem, você não consegue enxergar além da ponta do seu nariz, não é mesmo? Não percebe as entrelinhas, os subtextos do programa!

— Subtextos? — Ele só poderia estar brincando. Ou estava sendo irônico? Sim, ele estava ressentido e com raiva. Tudo porque, durante o jantar, ela havia comentado, de modo não muito delicado, mas sincero, certas atitudes da mãe dele.

— As pessoas não guardam lixo, as pessoas guardam lembranças. O que é lixo pra você é sentimento pra elas — ele respondeu escancarando a boca e deixando respingar sua saliva espumosa na barba.

Em um rompante, ela se levantou do sofá e, apontando para a televisão, disparou: 

— Lembranças? Você quer dizer que preciso guardar todas essas tralhas para provar que tenho sentimentos?

Mantendo os olhos injetados na tela, ele se questionou sobre o porquê de ter se casado com aquela mulher. Bem que sua mãe havia lhe dito que a esposa jamais conseguiria compreender as ações daqueles que verdadeiramente amam.

 

Conservando os olhos bloqueados no programa televisivo, ele sentiu a vista aguar com a mágoa e um leve tremor brotar no seu queixo. Então, descarregou nela toda sua verdade: 

— Você não entende o afeto guardado em cada um daqueles objetos, não enxerga a história especial contida neles. Você é pior que uma geleira!

— Eu? Meu Deus! Onde mora a paciência? — vociferou ela ao deixar a sala.

No quarto, estirada na cama, de bruços sobre a colcha de patchwork, manto que ela mesma bordara para o enxoval, recordou-se dos sonhos para o matrimônio que cerziu retalho a retalho.

Contornou, com a ponta da unha, cada ponto da costura enquanto mentalmente alinhavava os fragmentos de rancor colecionados desde que conhecera seu marido. Porções de antipatias, montões de repulsas, colinas de cólera, serras de ressentimentos, cordilheiras de decepções. No final das contas, ela não era muito diferente daquela gente acumuladora da tevê.

 

Desde os primeiros dias do casamento, ela tentou compor algo belo com aquela união, como havia feito com os retalhos velhos e disformes que ganhara de sua patroa e transformara numa caprichada colcha. Mas, por mais que tentasse combinar as individualidades dela e do marido, não conseguia enxergar onde estava o encanto da vida a dois. 

Enquanto um desgosto amargo ocupava a casa, e um desencanto espesso engolfava o casal, na tevê, o apresentador anunciava que, a pedido do público, o programa Acumuladores Compulsivos seria, a partir daquele momento, reprisado duas vezes na semana para a alegria das famílias.

© Copyright 25/02/2024
Cara-Metade.png

Lilian Amaral

 

 

 

Duas patas, sem pernas, braços, tronco ou cabeça. Duas patas robustas, cabeludas e, imponentemente, arrogantes marcham à frente, esbanjando soberba. Logo atrás, duas desamparadas mãozinhas as seguem. Suscetíveis, suadas e acanhadas, elas se sujeitam aos constantes coices deferidos pelas cascudas patas, sem lamúrias. Habituadas à violência corriqueira, acreditam serem meritórios os castigos. Não compreendem o porquê dos ataques, mas julgam justas tais bestialidades. Dos delicados dedinhos, que outrora tão apaixonadamente haviam ofertado, nem vestígio restou. Espezinhados, sucumbiram ao destino. Hoje, as desvalidas mãozinhas rastejam à sombra das prestigiadas patas.  

 

   

© Copyright 18/02/2024
Um coração maternal-montanha rochas .png

Lilian Amaral

 

Nosso amigo era mais alto que sua dimensão vertical. Na largura, dois campos de futebol, com certeza, boiariam dentro dele enquanto balançava as pernas, pernas essas semelhantes às lajes de pedra do Grand Canyon. Não que eu já tenha visitado a famosa atração geológica americana para ter a expertise requerida para sustentar tal comparação, mas é assim que eu imagino a grande fenda rochosa que costuma ambientar os filmes de Hollywood, como no clássico “Thelma e Louise”, de 1991, no qual, ao final do filme, as protagonistas abraçam a liberdade mergulhando no infinito abismo. Retomando a descrição do nosso amigo, faltou mencionar que sua imensa grandeza física não era maior que as palpitações do seu maternal coração, que acolhia, por toda a extensão do seu paredão rochoso, os ninhos das ararinhas-azuis que lá namoravam e procriavam.

© Copyright 12/02/2024
Bem Fechado.png

Lilian Amaral

 

Devolve o frasco à prateleira, calça rapidamente o tênis e sai de casa. As ruas estão escuras e caladas. Sem destino, não sente o vento, não sente nada. Avista uma porta iluminada, entra. Sem olhar para o entorno, caminha para a mesa no fundo do salão. Do outro lado, um casal divide uma mesa. Abstraídos por seus celulares, não se olham, não se falam. O restaurante está quase vazio. Ela fita a porta da cozinha, o garçom e a cozinheira a observam. Sente a pressão. Sabe que precisa fazer seu pedido. É tarde, o restaurante precisa fechar. Pensa em se levantar e voltar para casa, mas sabe que não pode fazê-lo. Enquanto permanecer ali, ela estará salva — e o frasco continuará bem fechado no armário do banheiro.

© Copyright 05/02/2024
Seu nome.png

Lilian Amaral

Quando ele nasceu, seu nome não foi cantado, recitado ou sussurrado ao seu ouvido.

Não era um nome parental, ancestral ou regional. Não era nome de divindade, santo ou celebridade. Não pertencia à botânica, química, biologia, história, astronomia, literatura ou matemática.  Também não tinha origem na composição de dois (ou mais) nomes.

A primeira vez que ele ouviu seu nome ainda estava dentro do calor acolhedor de sua mãe — aaaah, como era bom o seu casulo! Embora, naquele mesmo dia, coisas nada acolhedoras, mas, sim, bastante assustadoras, tivessem ameaçado seu éden.

Primeiro, foi a aguinha quente que sumiu, depois, os puxos e repuxos, os sons estranhos, as vozes apressadas e aflitas. Amedrontado, ele mantinha-se agarrado ao que conhecia, onde sentia-se protegido e aconchegado.

Sua mãe, heroicamente, resistiu 28 horas em trabalho de parto. Exausta e sem forças, ela persistia em sofrimento. Ele, pressionado e fraco, ia esvaindo-se. Até que, em meio à agitação e ao falatório externos, alguém gritou a palavra que viria a ser seu nome. Então, algo duro e frio comprimiu sua cabecinha na altura das orelhas, e ele foi pinçado para fora do canal vaginal. 

Desde esse dia, ele nunca deixou de desejar retornar ao seu paraíso e sempre, sempre, amaldiçoou seu nome.

© Copyright 29/01/2024
Todo dia. Todo dia. Todo. Dia..png

Lilian Amaral

 

 

... abro uma fresta  e espio os dois lados não o vejo maravilha vamos escapar hoje  puxo a Bella contornando rápido a esquina para aproveitar a brecha conseguimos quase comemoro solto a guia e ela trota na frente a cerejeira em plena floração deita galhos com pequenos buquês de crepe de seda cor-de-rosa que presenteiam a avenida na gelada manhã duas varredouras com suas vassouras puxando um carrinho nos cumprimentam com bom dia no canteiro central mais duas  cerejeiras também começam a florir pingentes com cinco pétalas rosadas dezenas de abelhas fazem a festa dois beija-flores se misturam a elas sem disputa tem alimento para todo mundo com os olhos embalo cada flor cada buquê  e respiro fundo a beleza na esperança de que adentre o corpo e desague em palavras pergunto à cerejeira como enquadrar tamanha vastidão em linguagem tão bichada de costume como dizia o poeta Manuel de Barros se o melhor lugar para guardar passarinho é a palavra a cerejeira também deve caber nela só que para se guardar qualquer coisa é preciso de uma abertura e espaço interior minhas palavras ou estão secas e herméticas demais ou transbordantes e abarrotadas demais o ponto de ônibus está lotado muitos estudantes com camisetas brancas de uniforme do Senai uma mulher muito jovem jovem demais com um bebê enrolado na manta rosa sem gorro capuz nada se uma cabeça velha e calejada como a minha está gelada imagine a da delicada recém nascida se não fosse pela Bella jamais sairia de casa nesse frio prendo a guia antes de atravessarmos para a praça solto-a novamente para que cheire todos os matinhos uma horda de pardais levantam-se em ondas conforme ela corre pelo gramado pobre pardais onde será que se guardam quando o sol se esconde as cerejeiras já perderam as folhas no mês passado e as flores em poucos dias também cairão as outras árvores também estão quase carecas meu deus onde será que dorme um passarinho no inverno penso em fazer ninhos com as palavras secas para aninhar passarinhos também uma fogueira para aquecer o homem que dorme sob a marquise daquele sobrado com as palavras transbordantes talvez eu possa alimentar o vira-lata ossudo que cheira a Bella talvez enfim reste lugar para guardar as cerejeiras assobio duas vezes sinal para retornarmos à casa quando nos aproximamos do portão vemos o preto de guarda nos esperando para o passeio ele também nos vê e seu olhar é de mágoa e rancor a Bella corre ao seu encontro e faz festa ele finge que a não conhece faço carinho em sua cabeça o chamo de garoto bonito a fera do quarteirão redobro os agrados e aos poucos o focinho rancoroso se desfaz ele nos perdoa por termos fugido dele escapando para um passeio tranquilo sem a frequente disputa de machos na pracinha ele enfim aceita entrar em casa e devorar uma cumbuca de ração e arroz com fígado... 

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Lilian Amaral

 

A mulher falava pelos

cotovelos,

joelhos,

tornozelos.

Até pelas juntas do mindinho.

Seus familiares tinham as orelhas convexas. Abarrotadas. Transbordantes. 

O marido, advogado, perdia clientes aos lotes por não conseguir ouvir as demandas.

Os filhos, adolescentes, sofriam bullying por não escutarem os professores.

O papagaio, famoso por ter sido exímio prosador, há meses, não conseguia descolar o bico. Atordoado.

As aranhas, baratas e formigas, há muito, haviam abandonado a casa.

 

Tudo começou há três meses, quando a mulher, após uma consulta com o terapeuta, recebeu a recomendação de que deveria expressar seus sentimentos em palavras e não mais engolir sapos e sopapos.

Desde então,

elanuncamaisparoudefalartagarelavadiaenoitenãodormianemcomia

 

A grulha era tanta que as palavras se entrelaçavam, amalgamavam. Ninguém entendia nada.

Deixei meu aquário. E, com meus oito tentáculos, me pus a desembaraçar seu taramelar:

 

Pontuei e virgulei tudo.

E, enfim, a família entendeu a única frase que ela, insistentemente, repetia.

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Lilian Amaral

 

     

       I ato: Teatro Elíseos

Espaço art nouveau de encenação, com vitrais sinuosos, cortinas de um carmim sedoso e palco em madeira de lei com aroma de verniz e cera de carnaúba. Será neste teatro que minha tia fará sua estreia como soprano.

      II ato: O fantasma da ópera

Musical escolhido para apresentação. Conta a trágica história de um triângulo amoroso nos bastidores de uma ópera. Tia Júlia será o pivô do conflito.

      III ato: Christine

Personagem disputada pelo Fantasma e por Raoul, a qual é interpretada por minha tia. No último ensaio, na cena em que Christine é sequestrada para um subterrâneo cavernoso, tia Júlia tem um chilique e, aos gritos, atraca-se com Roger, que faz o papel do fantasma. Ela arranca a máscara do personagem e a pisoteia, chocando o produtor do espetáculo.

     IV ato: Fantasma

É o vilão da história, um gênio musical que tem o rosto deformado e vive nas catacumbas do teatro. Interpretado pelo tenor Roger, o ressentido fantasma acaba por arrancar a peruca de minha tia após ter tentado roubar o namorado dela nos bastidores do ensaio.

     V ato: Raoul

O galã barítono que, no palco, enfrenta o Fantasma para ficar com sua amada, Christine. Nas coxias do teatro, não consegue decidir se deixa seu coração com tia Júlia ou o entrega a Roger.

     Final: Première

Na noite de estreia, o público é surpreendido por uma Christine descabelada e rouca. Um fantasma com a máscara remendada e a capa rasgada. E um Raoul que não apareceu na apresentação, pois, vitimado por uma fulminante paixão, fugiu com Avejão, o produtor.

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